Seleções brasilerias visitantes aldeia indígena no litoral paulista em 2013. Foto: João Gabriel/Globoesporte.com

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ARTIGO OPINATIVO – Esta semana foi lamentável para o rugby brasileiro, para dizer o mínimo. O anúncio – feito primeiramente fora do país – de que o Tupi – e provavelmente por tabela a Yara e o Curumim – não vai mais representar o rugby brasileiro foi um tapa na cara de quem batalha por um rugby mais claro, aberto, transparente, participativo e representativo. A mudança da identidade, do símbolo, que fora eleito popularmente, que tem significado, que foi defendido com orgulho por nossos atletas por 7 dos mais importantes anos da história de nosso esporte, não se faz de uma hora para a outra sem debate. Não é mera questão de marketing.

Decidir por uma mudança precisa envolver toda a comunidade. Um processo que comece por se discutir se o símbolo atual deve permanecer e apenas depois qual poderá substitui-lo.

Eu pessoalmente sou absolutamente contra qualquer mudança do nome – ainda mais no momento atual que claramente não é prioridade. Eu, aliás, gosto muito de Tupis, Yaras e Curumins. E por isso pretendo expor um pouco aqui do por que a sugestão de “apropriação cultural” é absurda e falsa. E que começou com grave ignorância sobre o termo Tupi – que busquei esclarecer na segunda-feira – e por falta de clareza sobre a formação do povo brasileiro.

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Formação do povo brasileiro 

Não deveria ser preciso lembrar algo que parece óbvio a qualquer um que vive o Brasil. Nossa população é o produto de 5 séculos de mistura intensa de europeus, africanos e indígenas, com mais uma adição de asiáticos e latino-americanos mais intensamente desde a Independência.

Mistura mesmo: branco com negro, branco com índio, índio com negro, os três juntos. O que é o termo “pardo” usado em censos senão essa mistura de meio milênio? Miscigenação, no entanto, é importante falar, foi tanto violenta (não consentida, como os flagelos de escravidão e de genocídios revelam) como voluntária (consentida, pela interação positiva dentro desse caldeirão).

Europeus de Portugal, Espanha e Holanda no período colonial e de todas as partes do continente do fim do Império à República, de Portugal à Rússia, da Alemanha à Itália, da Polônia à Espanha, da Lituânia à Inglaterra, da França à Ucrânia, cristão ou judeus. Da África, traficados como escravos das costas do que hoje são Guiné, Benin, Nigéria Angola ou mesmo de Moçambique, mas mais recentemente também imigrantes do outro lado do Atlântico. Indígenas das cerca de 2 mil etnias (e línguas) estimadas existentes quando os portugueses chegaram – algumas mortas, outras absorvidas à sociedade colonial pela miscigenação, não sem antes deixarem sua marca no sangue e na cultura de nosso povo. E outras ainda vivíssimas lutando por seu espaço no Brasil atual. Asiáticos do Oriente Médio (libaneses, sírios, palestinos, armênios) ao Extremo Oriente (japoneses, coreanos, chineses). Latino-Americanos das zonas de fronteiras (o pampa gaúcho que o diga) aos imigrantes mais recentes (argentinos, paraguaios, uruguaios, chilenos, bolivianos, peruanos, equatorianos, colombianos, venezuelanos, cubanos, haitianos…). Um caldeirão. E que não exclui outras origens que não citei, afinal, nós do rugby sabemos da importância que tiveram e têm neozelandeses, australianos, sul-africanos, samoanos, norte-americanos para nossos clubes e mesmo seleções nacionais.

Mas, onde o Tupi – que não é uma tribo! – entra? Como já disse no outro artigo, as línguas tupis são o único grupo de línguas presente em todo o território nacional, deixando profunda marca em nossa língua, de nomes de cidades e ruas a nomes de animais, comidas, festas. Mais que isso, tais populações – por meio desse caldeirão de mistura de 5 séculos – deixaram marcas profundas na nossa cultura – na nossa alimentação, nas danças e festas, nos jogos e lutas tradicionais. Claro, no folclore também (curupira, caipora, uiara…).

E eu falo de coisas que a maioria de nós sequer se deu conta um dia. Da capoeira (cujo nome é tupi e é uma luta que funde lutas africanas com movimentos indígenas) à mandioca, que é usada para tudo. Do boi bumbá ao hábito de tomar banho com tanta regularidade. Conte quantos estados (Pará, Paraná, Paraíba, Goiás, Tocantins, Roraima, Amapá, Sergipe, Piauí, Pernambuco…), cidades, bairros, ruas, têm nome que claramente não vem de Portugal. Passando também pelo nome que nós mesmos nos damos: não falamos “tupiniquim” como sinônimo de “brasileiro”?

Esse tema não é nada novo. Quem prestou atenção às aulas de história e literatura na escola deve se lembrar de todas as obras literárias e movimentos artísticos que valorizaram a fusão dos elementos indígenas, africanos e europeus. Para mais, “modernismo” é a palavra.

O Tupi é o denominador comum. É a maior influência, mesmo sabendo que não é a única família de línguas indígenas no país. Mas é a mais representativa e o elemento único do Brasil. Porque europeus e africanos não somos apenas nós no mundo. E mesmo quem sabe que não tem “sangue” indígena (e só sabe isso quem consegue rastrear todos os seus antepassados no exterior) se engana quando acha que “não tem nada a ver com os índios”. Engana-se porque o conceito de “sangue” é tacanha. Cada indivíduo é o produto também do meio onde cresce – portanto, um Brasil cuja cultura é fortemente influenciada pelos indígenas, mesmo quando não somos capazes de perceber.

 

Dizer que “Tupi” é “só índio” é negar quem é o povo brasileiro

Por isso mesmo, “apropriação cultural” é um conceito absurdo neste caso. Primeiramente, a CBRu precisa esclarecer se já houve tal alegação vinda de quem interessa: dos indígenas. E como e com qual representatividade veio. É fácil apontar como culpados “os chatos que falam em apropriação cultural”, mas é preciso revelar como e por quem esse termo foi usado. “Apropriação cultural” é para ser discutida quando há prejuízo a um grupo.

Entretanto, mais importante para se perceber é que o conceito de “apropriação cultural” é muitas vezes uma forma de exclusão. Dizer que “Tupi” é um termo “só para os índios” é dizer justamente que “nós não temos nada a ver com eles”. É negar que o povo brasileiro foi formado pela mistura entre europeus, africanos e indígenas. Flerta com o preconceito. Não é “moderno”. É arcaico.

O Tupi é formador do povo brasileiro, portanto é um pouco de todos nós. O que traz responsabilidades: o dever de saber zelar pela diversidade de nosso país.

Quando as Seleções Brasileiras visitaram uma aldeia indígena em 2013 o cacique local afirmou que se sentiu orgulhoso de saber que uma seleção brasileira se identificava com a cultura indígena. Oras, não parece óbvio? O indígena sabe que a maior proteção que ele pode ter é que o brasileiro reconheça sua importância para o país! Se o brasileiro reconhece que ele é um pouco “tupi”, o “tupi” está mais protegido.

E o rugby, esporte que até pouco tempo atrás era chamado de exótico, de “coisa de gringo”, foi profundamente nacionalizado nos últimos anos. O Tupi e a Yara eram um lindo passo nesse sentido, ainda que incompleto, pela falta de ações que valorizassem isso tudo que narrei neste artigo. Era um passo em se fazer do esporte da bola oval um esporte genuinamente brasileiro também. Até ideias erradas aparecerem…

Em 2013, as seleções brasileiras visitaram a aldeia Ywi Pyaú, no litoral paulista, sendo muito bem recebidos. Você lembra? O cacique Awa Tenondguá declarou naquela visita: “Para mim, é importante. No momento que me telefonaram, fiquei emocionado quando soube que a seleção estava com símbolo que representa nosso povo. Logo disse que seriam bem-vindos. Foi bastante significante para mim. Nosso povo foi o primeiro a sofrer o massacre dos portugueses. Nós batemos de frente, não fugimos. O que nós podemos passar para eles é a determinação, a vontade. Quando um tupi-guarani vai para uma briga, acredita sempre que vai vencer”. Foi a última ação do gênero… #culturaderugby Foto: João Gabriel/GloboEsporte

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2 COMENTÁRIOS

  1. A questão não é simples, Victor. E o teu texto não deixa opções aos adversários a não ser se identificarem como “arcaicos”. Obviamente não existe uma tribo chamada “tupi”, assim como não existe uma comunidade chamada “indo-europeu”. Dizer que “Tupi é formador do povo brasileiro, portanto é um pouco de todos nós” é uma coisa. Outra coisa é dizer que, porque todos somos um pouco “tupis” (o que é inapropriado, já que é uma designação linguística – ou não? – e na medida em que ele participa do português brasileiro, é uma afirmação tão válida quanto “somos um pouco Jê”, “somos um pouco Bantu”, “somos um pouco celtíberos”, “romanos” etc), podemos simplesmente estampar uma foto genérica de um “índio” “”””tupi”””, que esconde as mazelas por trás da denominação. Ou bem “tupi” é um termo designando um conjunto de etnias, que falam línguas aparentadas, ou bem “tupi” é um termo designando apenas as línguas mesmas; passar de um ao outro sem avisar gera ruído.
    Veja bem, eu, como você, acho lindo lembrar dos nativos brasileiros toda vez que falamos da seleção nacional de rugby, quase me esqueço de como o Estado brasileiro e seu povo sempre estendeu a mão para esses povos (#sqn) ao longo dos séculos e respeitou suas comunidades, suas terras, suas línguas (#sqn).
    Acho que precisamos reservar um espaço na discussão para entender por que alguém pode se sentir ofendido (talvez possamos informalmente chamar a seleção de “tupis”, “iaras”, “curumins”, mas com outra figura na camiseta, sei lá, um vitória-régia mesmo, uma orquídea, um mandacaru, sei lá!)