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ARTIGO OPINATIVO – Nesta semana, em breve passagem por Londres, tive a oportunidade de ir como torcedor (férias!) a uma partida da Super League, o Campeonato Inglês de Rugby League, entre London Broncos e Salford Red Devils. O resultado de 30 x 10 para os visitantes não é o que importa. O dia foi de ver de perto a cultura de um jogo profissional de Rugby League. Como são as torcidas do “outro rugby”? Qual o comportamento, os valores… ?

Primeiramente, é importante contextualizar. O Rugby League é fruto de uma disputa de classes. Não por acaso, escrevo este texto no dia 1º de Maio. Isto porque o League foi o desfecho encontrado pela classe trabalhadora para levar adiante sua paixão pela bola oval. Como assim?

O rugby nasceu na Inglaterra no século XIX como um esporte de alunos e ex alunos de escolas de elite. Aristocratas, empresários, profissionais de alta qualificação, militares, burocratas. Mas o rugby não estava restrito apenas a quem tinha dinheiro, status social. No norte da Inglaterra, o operariado abraçou a bola oval. O rugby se tornou a religião laica do povo em cidades nas regiões industriais nos arredores de Leeds, Hull, Manchester e Liverpool.

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E não tardou para que tais clubes despontassem, formassem atletas para a seleção inglesa e acumulassem vitórias contra os clubes elitizados de outras partes do país. Ao contrário desses, os clubes do Norte movimentavam cidades inteiras, tinham torcedores e demanda por ingressos. Mas, como esperado, o amadorismo era incompatível com a vida na fábrica, na mina.

Em uma época mais cruel, de frágeis direitos trabalhistas, o esporte de alta competição não era para o operário, que não podia deixar de bater cartão por conta de uma lesão jogando rugby. Não podia arcar com viagens do próprio bolso. Os clubes dessa parte do país, no entanto, tinham receitas de venda de ingressos. Tinham apoio de empresários locais interessados no prestígio que apoiar o clube da comunidade lhes conferia. A demanda para que pagamentos aos atletas fossem liberados era óbvia – e a resistência da parte dos clubes da alta sociedade, que controlavam o jogo, também era. O conflito veio.

Em 1895, a exigência dos clubes do Norte era clara: poderem pagar aos atletas pelas horas perdidas de trabalho nas fábricas. Não era profissionalismo exatamente, e sim compensação. A reivindicação foi barrada e a rebelião se deflagrou. Os clubes do Norte da Inglaterra romperam com a RFU (a federação inglesa) e fundaram sua própria liga, passaram a se autogovernar. O pagamento por horas perdidas de trabalho logo evoluiu para profissionalismo pleno. E livres para jogarem como queriam, os rugbiers do Norte foram pouco a pouco mudando as leis do jogo, desenvolvendo um novo rugby, diferente e voltado para o espectador. Mais aberto.

Essa história do Rugby League evidentemente produziu uma cultura própria e distinta do Rugby Union. A semelhança com o futebol, pelo fato de ser um jogo dos mais pobres na Inglaterra, é evidente, e a rivalidade existe: o League e o futebol no Norte da Inglaterra são concorrentes e muitos torcedores de um esporte rejeitam o outro.

Por outro lado, a rivalidade histórica do League com o Union parece assimétrica. O Union rejeita o League e por décadas atletas que tivessem jogado League (mesmo o amador!) eram banidos pelo resto de suas vidas de jogarem Union. Porém, o Union no Norte da Inglaterra era muito menor e restrito aos mais ricos. Logo, distante da vida e das preocupações dos torcedores do League. Talvez, o League incomodasse mais o Union do que o oposto.

Em Londres, no entanto, o League é um anônimo. Na Inglaterra, o League falhou em se espalhar pelo país. Em mais de 100 anos de existência o esporte é basicamente paixão do Norte, onde sofre com a força do futebol. Na verdade, ele é identidade do Norte, é o “jogo diferente” das pessoas de lá. Em Londres, quem joga e assiste League? Quem veio do Norte, quem tem família no Norte. O londrino típico praticamente ignora a existência do League.

E essa impressão foi constatada assim que iniciei minha viagem ao Ealing Trailfinders Sports Ground, a “casa” do London Broncos. O “estádio” é acanhado. Ealing é um bairro no subúrbio de Londres e é preciso um ônibus após o metrô para desembarcar por lá. O Ealing Trailfinders RFC é um centenário clube de… Union. E cresceu recentemente, tendo alcançado a segunda divisão inglesa. Por isso, investiu em sua casa, erguendo arquibancadas que comportam 3 mil torcedores. Precisando maximizar o investimento, o clube abriu suas portas para o Broncos, que não tem casa própria.

O clube londrino de League foi fundado em 1980 pelo Fulham, clube de futebol que, na época, se aventurou em mares desconhecidos, tentando ganhar dinheiro com a bola oval. Em 1980 o Union ainda proibia o profissionalismo e a alternativa era o League, que estava louco para ter uma equipe na capital para tentar ser um esporte realmente nacional. O tempo passou, o Fulham saiu do esporte e o clube foi repaginado, oscilando entre a Super League (1ª divisão) e o Championship (2ª divisão), mas tendo voltado à elite em 2019.

A sensação de estar indo a um evento bem “lado B” era óbvia e ao chegar ao estádio constatei o que esperava: havia mais torcedores do Salford Red Devils que dos Broncos. Afinal, o Salford é clube histórico e evidentemente tem torcedores morando em Londres, emigrados de sua cidade de origem (subúrbio de Manchester), além de alguns malucos que viajaram 4h para acompanharem o time. A proporção era de 3 para 1, de um total de cerca de 1mil pessoas no jogo.

Mas, quem eram os torcedores do Broncos? Três tipos de gente: (1) torcedores de outros clube do Norte do país que moram em Londres e adotaram o Broncos como 2ª equipe; (2) malucos por esporte que apreciam esportes “lado B” (quem sou eu para criticar?!); (3) sócios do… Ealing! Isto é, gente do Rugby Union que abraçou a nova irmandade com os Broncos. Tal camaradagem era evidente no clube. O Ealing tem uma linda club house com pub (é claro que cerveja é liberada para os torcedores) e os sócios frequentam o clube aos finais de semana. Se tem jogo de League, por que não prestigiar? Com esse espírito, a confraternização dos sócios do Ealing com os torcedores do League rola em clima de festa e diversão, de puro espírito do rugby.

E isso foi a primeira coisa que me chamou a atenção. O “espírito do rugby” que tanto amamos estava lá no League igualmente. Mais que isso, igual no Union, as torcidas do League estavam juntas, sem precisar de separação. Perguntei se isso ocorria em jogos com maior rivalidade e a resposta foi feliz: “é lógico”. Portanto, nesse aspecto, League e Union não se diferem.

Porém, havia um setor do estádio todo vermelho, praticamente apenas com torcedores do Salford. Fui lá. E o clima me fez lembrar o futebol longe dos holofotes. O futebol dos clubes pequenos. Torcedores cantando o jogo inteiro, do início ao fim, com bumbo e ritmo de torcidas de futebol. Me senti numa Rua Javari, como se estivesse vendo o Juventus da Mooca. Piadas, risadas, barulho. Havia gritos direcionados aos atletas sim. Aquele burburinho sobre marcações da arbitragem (ai de quem me disser que no Union não tem! Porque tem aos montes!). Um mascote fenomenal (olha o nome: Dr Devil!) literalmente endiabrado correndo pelo campo, subindo na arquibancada para tocar o bumbo e fazendo zoação (nada de mal gosto) com o mascote dos Broncos. É cultura popular, de quem respira a arquibancada, de quem curte a vibração de um estádio, sem nariz empinado, sem pose ou arrogância.

A cada try do Salford era festa. Igual gol. Gente pulando, bebendo e mais cantoria boleira. Os Red Devils venceram e, quase sem separação de arquibancada e gramado, os jogadores foram celebrar com a torcida – abraçando os fãs, tirando selfies.

A Inglaterra mudou muito nos últimos 40 anos. O governo de Margaret Thatcher nos anos 80, impopular com a classe operária, teve efeitos profundos – e disruptivos – no Norte da Inglaterra. O mundo do neoliberalismo levou as fábricas para longe – para a Ásia, Leste Europeu… O resultado é que quase todas as cidades onde o League é paixão estão no topo da lista de cidades mais pobres da Inglaterra, com maior desemprego, alcoolismo e outros problemas sociais. O League é o que sobrou para muita gente. O efeito no esporte também foi forte e, com o Union virando profissional em 1995 e com a NRL australiana dominando o League mundial, o resultado é que os clubes da Super League não podem pagar altos salários. O atleta do League é como seu torcedor. A ligação entre eles é forte, o senso de comunidade e união também.

Ali no anônimo campo do Ealing pude aprender que rivalidade entre League e Union é a maior bobagem. Pergunte ao sócio do Ealing que bebia vibrando com os Broncos. Pergunte ao torcedor do Wigan (rival do Salford), com a camisa do Broncos, que encontrei no metrô e se dizia muito feliz com o “perdido” campo do Ealing, pois graças a uma parceria com o Union ele podia ver o jogo que cresceu amando. Constatei que torcer com a camaradagem do Union e a paixão do futebol é plenamente possível. Em Salford, eles te darão uma aula sobre isso. Cultura do esporte operário unida com o cavalheirismo esportivo. O League raiz é isso. Sem preconceitos, apenas paixão ovalada.

E um pouquinho de descontração em ritmo de férias para mim (por favor!).