Eric Romano com a bola da CBRu

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ARTIGO OPINATIVO – O dia 22 de setembro de 2020 foi intenso para o rugby brasileiro. A Confederação fez o anúncio oficial de troca de CEO, com a saída de Jean Luc Jadoul para a contratação de Eric Romano. O fato, que parecia uma mudança comum dentro de uma entidade, se transformou num turbilhão, uma vez que rapidamente postagens que Romano fez em suas redes sociais com caráter machista e homofóbico vieram à tona. O rugby apareceu na mídia, por algo negativo, e a comunidade se uniu para pressionar a entidade. Ao final da tarde, Romano deixou o cargo.

O movimento foi tão grande que o Portal do Rugby inclusive teve um colapso, com queda de servidor ficando indisponível ao longo de boa parte do dia.

 

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O pior

De todo ano, vamos analisar o título. O dia começou, evidentemente, com o “pior” do rugby, isto é, com o rugby tendo um encontro com a realidade: a persistência do machismo, da homofobia, no esporte. O que infelizmente é mais do que esperável, afinal, todo esporte é um reflexo da sociedade – ou de segmentos dela. Trata-se de uma realidade essencial de se deixar claro e não jogar para baixo do tapete. O rugby é um esporte maravilhoso, mas há muita gente no nosso esporte que arrota valores da boca pra fora, enquanto pratica tudo aquilo que é reprovável pelo espírito do rugby – e sem se envergonhar disso.

Ressalto, aliás, que não sou eu que estou enviesando o “espírito do rugby”. Nosso esporte tem como cartilha o respeito e a solidariedade que, conjugados, são entendidos pela própria federação internacional (World Rugby) como o mantra de que o rugby é para todos e todas (todxs). Quem não vive dentro da caverna e está atento ao que a federação máxima de nosso esporte tem feito, já deve ter percebido que o desenvolvimento do rugby feminino é um dos pontos centrais nas missões atuais do World Rugby, bem como a luta contra a homofobia – e, não por acaso, o World Rugby apoia oficialmente a International Gay Rugby, entidade que luta pela inclusão LBGT no rugby.

Dito isso, a pressão para que todas as entidades ligadas ao rugby estejam alinhadas com tais princípios é essencial. Mais que isso, fica muito claro aqui que sim, esporte e política se misturam – e o tempo todo. E isso não é negativo, é natural. Tão natural que é preciso aprender a conviver com a política, e não negá-la, como já tanto fizeram alguns no rugby, dotados de visão rasa, simplismo, ou até mesmo de más intenções (cada caso, é um caso, não generalizo). Negar a política nos leva para os piores lados dela.

Alongando-me sobre o assunto, não custa lembrar que todo ser humano, todo indivíduo, se relaciona com o mundo a partir de uma visão, uma ideologia. Não existe ninguém que fuja disso. Porém, existe quem não saiba disso. Vivemos em sociedade e, obviamente, agimos de modo coletivo. Logo, estamos falando de política. O ser humano é político por natureza. Com isso, modos de enxergar o mundo vão conflitar. O rugby, como esporte, como prática social (e, por que não, instituição social?), tem uma posição sobre o feminismo, por exemplo. Uma, aliás, bem distinta dos textos publicados por Romano. Basta haver coerência com os valores do esporte – aliás, institucionalizados, declarados pelas entidades que regem a modalidade.

A contratação de Romano me surpreendeu, mas não apenas por seus posicionamentos (que eu desconhecia). A gestão de Jean-Luc Jadoul vinha em um movimento extremamente positivo de diálogo com a comunidade. A formação do Núcleo do Jogo ao longo da pandemia, com a realização de muitas atividades online com clube – inclusive de estados não federados – ofereceu esperanças de que um bom caminho estava – ou ainda está – sendo tomado. Por isso, fiquei surpreso com a troca, que ocorreu exatamente um ano após a contratação de Jadoul. E o que dizer deste ano? Uma pandemia em metade da gestão é certamente um desafio pelo qual ninguém antes passou e, com isso, pode levar a julgamentos precipitados. No entanto, eu não estou no Conselho para saber como foi o processo todo ao longo deste ano e, por isso, meu julgamento é apenas de alguém assistindo de longe à gestão.

Passada a surpresa, veio a indignação por ver alguém que não condiz com os valores do esporte ser contratado (e que espero que tenha tomado o episódio todo como uma lição para a vida, com sinceridade). Ainda assim, vou fazer o papel da ponderação neste fim de noite. Acho que vasculhar as redes sociais é extremamente complexo. Pensemos bem no que isso significa. É uma prática que abriria precedentes indesejáveis. Nossa sociedade abriu uma verdadeira Caixa de Pandora nos últimos anos que polarizou o pais de modo cada vez mais perigoso. Vasculhar as redes sociais de alguém como critério de seleção de emprego significa não apenas procurar por traços que sejam incompatíveis com a missão institucional do cargo (como foi o caso de machismo, homofobia). Significa também se deparar com outras informações que podem acabar influenciando (mesmo que inconscientemente) a contratação – religião, preferência partidária, gostos pessoais, etc, etc. Portanto, por mais que pareça lógico “conhecer quem é a pessoa”, trata-se de uma prática delicada, porque abre caminho para outros males. 

Por outro lado, pessoas não vivem isoladas. Elas têm passado e esse passado pode ser desenterrado por quem as conhece. Foi o que ocorreu no caso de hoje e, uma vez que aquelas postagem emergiram, elas precisavam ser levadas em consideração. Mais uma vez, fica a máxima de que a rede social é um local público, quando você opta por ter um perfil público. A internet é como a rua. Na rua, público e privado se misturam. O que pode uma hora parecer pessoal pode passar a atingir todos ao redor. Quem fala o que quer, ouve o que não quer. Faz parte da democracia.

Nesse sentido, posso parecer contraditório sobre a rede social e, fato, trata-se de um tema espinhoso. No entanto, num trabalho que começa com uma seleção por parte de uma agência ou RH, a análise das redes sociais pode ser feita previamente não por quem decidirá a contratação (para não ser enviesado por assuntos não pertinentes), mas a partir de recomendações ligadas à descrição do cargo. Se é alguém que precisará lidar com relações humanas e defender a diversidade, é preciso que uma análise prévia ocorra pela agência ou pelo RH para que se atente especificamente a tais aspectos. É um pré requisito para o cargo de CEO de uma entidade esportiva. É uma adequação a seus valores.

Além disso, há mais formas de se compreender quem são os(as) candidatos(as) às vagas sem que se precise mergulhar nas redes sociais. Se o cargo é de liderança do rugby, ele precisa necessariamente lidar com questões de gênero e sexualidade (bem como racismo e todo tipo de discriminação), uma vez que são questões cruciais no diálogo com a comunidade. Deste modo, não basta entrevistar o(a) candidato(a) acerca de sua capacidade de gestão, de seu currículo. É preciso entender sua visão sobre a comunidade e sua diversidade. Obviamente, pessoas mentem, dissimulam. Nenhuma entrevista é infalível. Porém, é preciso colocar o combate à discriminação e a defesa da diversidade como aspectos centrais da entrevista – e o preconceito, em geral, leva ao “ato falho”.

O quanto a CBRu (ou quem fez a seleção por ela) se preocupou em entender qual era a visão dos candidatos sobre esses temas? Eu não sei, não estava na entrevista. Mas algo deu errado.

 

E o melhor?

Pois bem. A mobilização vista pela comunidade do rugby nas redes sociais foi incrível e crucial. Nos últimos anos, eu sinceramente caminhei para a lamentação de acreditar que havia uma letargia, mas isso se provou um julgamento meu equivocado. As pessoas se mobilizaram para que o rugby fosse liderado por alguém que fosse olhar com respeito a todos os lados do esporte. Isto é, a comunidade deu uma verdadeira afirmação de que não quer machismo, homofobia, preconceito no esporte. O rugby brasileiro tem como seu maior trunfo uma seleção feminina vencedora, que efetivamente é uma liderança positiva da modalidade. Felizmente, houve uma adesão sem precedentes ao movimento e a mudança ocorreu.

Agora, é essencial que haja uma aproximação cada vez maior da comunidade com o Conselho da CBRu. Afinal, se a mobilização pelo que “o rugby não quer” foi ouvida, é preciso que haja mais mobilizações pelo que “o rugby quer”. Haverá eleições no Conselho em breve e é essencial que as pessoas coloquem no ar as demandas. Levar a sério a eleição de representantes de atletas e, sobretudo, dos representantes de federações e clubes. Dentro da política se transforma a sociedade e isso não é diferente no esporte. A política é tanto a mobilização na rua, na internet, como também o voto, a cobrança dos representantes.

Os processos políticos do esporte, aliás, precisam ser entendidos. A CBRu não é uma autocracia. Uma vez que a contratação de hoje foi contestada, a CBRu precisava seguir o seu correto funcionamento e isso implicava a convocação do Conselho e uma reunião do mesmo. É o famoso “calma lá”, a demissão não poderia ter ocorrido no minuto seguinte aos clamores. Entender como funciona a entidade é essencial para que a comunidade efetivamente exerça sua voz, por meio dos representantes que estão no Conselho. Faço questão de ressaltar isso porque sinto que existe ainda muito desconhecimento de como funciona a política no esporte e isso impacta diretamente na capacidade da comunidade levar adiante suas demandas.

Em carta enviada ao Conselho, Romano pediu sua demissão na mesma tarde do anúncio de sua contratação. Provavelmente, especulo eu, a demissão ocorreria de todo modo. Creio que do mesmo jeito que houve revolta da comunidade, houve também desaprovação dentro da CBRu com relação às postagens descobertas e o caminho correto foi tomado.

Nesse sentido, é positivo vermos que a vontade expressa pela comunidade na internet fez toda a diferença. E é muito importante que ela siga fazendo. Mais importante ainda é que os valores do rugby sejam carregados e propagados por todos e todas com o devido zelo. Em nota de repúdio publicada na imprensa por um grupo de clubes, a mensagem está clara e é endossada pelo Portal do Rugby:

“Individual e coletivamente trabalhamos para construir não só uma imagem positiva para o esporte no país, mas mudanças estruturais que garantam a democratização do rugby, considerando as interseccionalidades, e repudiando quaisquer discriminações de caráter LGBTfóbica, racista, machista, classista, etc. tornando-o mais acessível e seguro para todas, todos e todes”.

Isso tem que ficar claro.