Foto: Mitre10 Cup

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Estão encerradas as festividades do rugby neozelandês 2020, depois do inesquecível Moana Pasifika versus Maori All Blacks e é altura de falar do que foi a temporada da Mitre 10 Cup, seja a principal divisão, a Premiership, ou a secundária, a Championship, apurando quem foram os melhores (mas nunca revelando os piores!), os veteranos que motivam a qualquer um a calçar as botas, os jogadores interdisciplinares que roubam o nosso coração e muito mais para ler, analisar e discutir neste artigo de fim de cobertura da competição neozelandesa.

We are the champions: Tasman e Hawke’s Bay

Makos e Magpies, tubarões e pássaros, bicampeonato e campeão com galardão especial… há melhor forma de descrever o resultado final para Tasman e Hawke’s Bay em 2020? Os Tasman Makos de David Havili, Mitch Hunt, Will Jordan, Sione Havili, Fetuli Paea, Leicester Fainga’anuku, Quinten Strange ou Finlay Christie (sim, decorem os nomes dos jogadores que não conhecem, porque eles o merecem) terminaram a época com o caneco debaixo do braço, depois de terem apanhado um ou dois sustos durante a fase regular, como a derrota por 29 pontos a zero ante os seus “irmãos” e rivais de Canterbury, o que levou à perda do 1º lugar. Mas o que importa é ganhar os jogos decisivos, ou seja, a meia-final e final e foi exactamente isso que se passou.

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Num estilo imprevisível, incendiário e que impôs um rugby espectáculo lendário e que facilmente “compra” adeptos, este elenco dos Makos simplesmente montou algumas das melhores jogadas dos últimos anos na Nova Zelândia, imprimindo um ritmo muito ágil e acelerado apetrechado de uma técnica de handling genial que rompeu defesas e acabou por os levar ao bicampeonato.

Porém, não é só de 3/4’s malabaristas e magos que Tasman é feita de, pois o pack de avançados fez mossa em dois sectores principalmente: mauls dinâmicos (12 ensaios vieram dessa “região”, com só Hawke’s Bay a ter conseguido mais) e imposição física no breakdown, coleccionando diversos turnovers que rapidamente se tornavam em acções atacantes perigosas.

Largando os fantasistas de Tasman (muita atenção ao Crusader Leicester Fainga’anuku se faz favor para a temporada 2021), é altura de nos juntarmos no “rolo compressor” de Hawke’s Bay, onde alinha o Man of the Season, Ash Dixon, para além dos espantosos Marino Mikaele-Tu’u, Folau Fakatava, Devan Flanders, Pouri-Rakete Stones ou Jonah Lowe. Um maul dinâmico primoroso e requintado, uma linha de 3/4’s efectiva e que sabe perfumar o jogo quando é necessário e um colectivo extremamente difícil de quebrar, são talvez os principais traços identitários destes Magpies que trataram de juntar dois títulos em 2020, o Championship e o Ranfurly Shield, alcançando uma temporada memorável.

Se a época nem começou da melhor forma, divagando entre a parte de cima da tabela só que algo “longe” do 1º lugar – na altura bem ocupado por Otago -, a partir da da 2ª jornada foi sempre a colher grandes exibições, a maioria levando a vitórias extraordinárias como aconteceu nas recepções a Canterbury (primeiro passo no caminho até à conquista da subida de divisão) ou Wellington, confirmando o estatuto de candidato ao troféu da Championship. Ter um líder como Ash Dixon dentro de campo já é 1/4 de caminho para a bonança, depois ter jovens extraordinários como Folau Fakatava (o Tonga tem de agarrar o formação sob pena dos All Blacks se lançarem primeiro) ou Marino Mikaele Tu’u e uma série de jogadores-formiga com um gosto pelo trabalho imenso é a receita suficiente para efectivamente chegar aos títulos de campeão e de um domínio de jogo bem temerário como se viu nos dois jogos a eliminar frente a Taranaki e Northland.

Nenhuma das equipas vitoriosas da Premiership e Championship foram as que tiveram o melhor registo de ensaios, pontos marcados ou sofridos, pois esse registo pertenceu a Auckland com 43 ensaios, 299 pontos marcados enquanto Southland terminou como melhor defesa, com 193 pontos sofridos.

A country for old and young men

Liam Messam, Adam Thomson, Ash Dixon, Jason Rutledge (é quem detém o recorde de atleta mais velho a jogar na Mitre 10 Cup, tendo pisado o relvado esta temporada com 42 anos de idade no Passaporte), Kieran Read, Nasi Manu, Josh Hohneck, Patrick Osborne, René Ranger, são nomes antigos da bola oval neozelandesa e que em 2020 decidiram dar (ou regressar) à Mitre 10 um pouco da sua experiência, técnica, inteligência, força, ou qualquer outro atributo para dar um edge especial às suas equipas.

Numa competição militada principalmente pelos mais jovens, em que os atletas a trabalhar com os All Blacks poucos jogos efectuam – para o bem e mal, é uma maneira de surgimento de novos talentos na Nova Zelândia a nível profissional -, o carisma destes veteranos é fulcral para dar um contraste ainda mais promissor a esta competição, que muitas vezes parece ficar esquecida dos adeptos da modalidade, a começar pelos próprios residentes locais.

Não só é um campeonato para os já “doutores”, é também um espaço para os mais novos procurarem um caminho para o seu futuro, de conseguirem chegar ao nível do Super Rugby e de Test Match e não há dúvidas que “meninos” como Josh Lord, Xavier Roe, Zarn Sullivan, Folau Fakatava, Chay Fihaki (poderá ser uma daquelas revelações bem ao gosto dos fãs de rugby total), Tyrone Thompson (1ª linha polivalente e que tem um jeito natural para correr com a bola nas mãos), Ollie Norris vão chegar longe porque têm na Mitre 10 Cup um laboratório decisivo para se desenvolverem e atingirem o patamar desejado.

OS CANIVETES-SUÍÇOS: FOLAU FAKATAVA, SALESI RAYASI, DAVID HAVILI E JORDEN OLSEN

O que são os canivetes-suíços na gíria do rugby? Aqueles atletas que facilmente fazem “tudo” e são excelentes em mais do que um departamento, como é o caso dos nomes assinalados no título, começando a destacar um deles: David Havili. Não é mistério ou desconhecimento algum do enorme talento e poder do defesa que faz parte de um dos elencos dos Crusaders mais bem sucedidos da história do Super Rugby, categorizando sempre por um dos jogadores com mais azar dentro da Nova Zelândia, ora porque quando parece estar a caminho de voltar a fazer parte do All Blacks se lesiona ora quando está lá a equipa produz uma má exibição e acaba por ser preterido pela equipa técnica.

Contudo, dentro do Universo da Mitre 10 Cup, David Havili foi senhor, rei e imperador em Tasman, governando lucidamente graças a uma panóplia de qualidades virtuosas, seja o jogo ao pé que se desdobra nas necessidades da equipa, a facilidade em assumir ele a criação e movimentação da bola por entre as unidades de ataque ou de pegar mesmo a “estaca” e desferir um golpe na defesa adversária, somando-se a segurança total na recepção dos pontapés por maior dose de dificuldade que apresentem. É aquele multifacetado jogador que pode tanto aparecer como defesa, abertura ou centro, nunca caindo na sua produção técnica ou qualidade exibicional e os 38 pontos que saíram das suas botas acabaram por ser fulcrais na conquista do título, já que 8 deles se registaram na disputadíssima final da Premiership.

E Salesi Rayasi? E Folau Fakatava? Comecemos pelo ponta que foi autor de 15 ensaios, 7 assistências e uma série de pormenores técnicos e tácticos que terão de empurrá-lo no sentido de chegar a um patamar francamente melhor do que o banco dos Hurricanes, seja pelo poder de explosão e agilidade com que passeia pelas pontas ou pela facilidade em conseguir ser ele próprio a determinar como a equipa deve ou não funcionar em termos de organização ofensiva dinâmica, criando problemas sistemáticos a estruturas defensivas contrárias que não consigam manter uma postura sólida em todos os momentos.

O formação de Hawke’s Bay (e Highlanders) pode vir a determinar uma nova era no rugby neozelandês e mundial, desde que consiga fazer o que fez durante toda a temporada incluído no jogo entre Maori All Blacks e Moana Pasifika. E o que é que o número 9 faz assim de tão especial? Passe carregado de confiança, um ímpeto físico para nunca parar e manter a sua equipa sempre numa roda-viva, um poder de comunicação muito incomum para um jovem de 20 anos e a lucidez para perceber como está a funcionar o jogo. É um daqueles atletas dotados e com um talento especial, apaixonando (e irritando) quem está na bancada ou na televisão, capaz de ser ele mesmo uma força na defesa, tendo uma técnica de breakdown impressionante e nada natural para a sua posição, e há que o categorizar como um perigo para a equipa opositora.

Há outros nomes, como Jorden Olsen, um talonador relativamente desconhecido mas que aos 28 anos foi uma das revelações de Northland, muito pela qualidade de fazer a diferenças nas fases-estáticas ou dinâmicas do jogo de avançados deste emblema finalista da Championship, e não há espaço para dúvidas que mais “canivetes-suíços” vão surgir no presente e futuro da Mitre 10 Cup.

RUGBY TOTAL OU ESPECIAL?

É difícil determinar o quão total é o rugby jogado pela maioria das equipas da Mitre 10 Cup, e é importante sublinhar que o mito que optam por defender menos ou não ter uma postura mental/física tão forte na placagem para se preocuparem mais com o ataque, é apenas e só um mito, pelo menos na actualidade.

A qualidade ofensiva dos emblemas que participam na Mitre 10 Cup é a pureza de procurar espaços, de inventar pormenores, de tentar dominar defesas extremamente agressivas através da eloquência de movimentos e de pautar um capricho técnico invulgar que torna os atletas das Ilhas do Pacífico como quase únicos ou grandes mestres. Quando vemos um Hawke’s Bay vs Northland ou Waikato-Bay of Plenty (30-33) sentimos uma pulsação diferente e que mexe com o adepto da bola oval, principalmente se tiver sedento por ver ensaios “diferentes” ou pelo menos sentir uma genialidade táctica e técnica que o arranque da cadeira e leve a mesma aceitar uma destas equipas como “sua” independentemente da distância geográfica.

Tasman tem um jogo total, já que tanto sabe batalhar, trabalhar e marchar nos mauls dinâmicos ou formações-ordenadas como explode constantemente através das suas unidades recuadas; Canterbury é uma equipa resiliente, “chata” e dominadora arrancando coelhos da cartola quando menos se espera, Otago gosta de brilhar pontualmente no jogo de risco mas é pela táctica dura e fria que procura causar problemas a quem está do outro lado; Auckland tem várias doses de magia pura dentro das suas veias, sem abandonar com aquele instigar físico por parte dos seus avançados que incomoda totalmente os seus rivais; ou Hakwe’s Bay que gosta de voar nas asas dos seus pesos-pesados, mas mantém os seus vislumbres técnicos de extraordinário ilusionismo.

É definitivamente um campeonato que junta todas as condicionantes e características do rugby neozelandês, num estado mais cru e puro que o Super Rugby (mais trabalhado em que a liberdade dos jogadores é algo menor) e de emoção total, que só merecia ter outro alcance internacional.

PORMENORES-DE-BOLSO

Para acabar, ficam alguns dados, ideias, notas e pormenores para lançarem quando estiverem a conversar sobre rugby (ou não, nunca ninguém levou a mal interromperem um debate político para dizer que há uma taça especial disputada pelas federações-provinciais neozelandesas) à mesa, no treino (antes ou depois também se aceita), na net ou em outro local qualquer!

BrynGatland, filho de Warren Gatland, foi o melhor marcador de pontos da competição com 119 (só 3 ensaios) mas que nada serviram para a sua equipa, pois North Harbour acabou mesmo por descer de divisão na última ronda da Mitre 10 Cup (se ganhassem iam aos playoff, se perdessem… bem seriam relegados);

– David Havili, Salesi Rayasi, Simon Hickey, Ash Dixon, Sevu Reece, Alamanda Motuga, Jared Page, foram autores de hattricks durante a época;

Bay of Plenty, comandado pelo novo treinador-interino dos Chiefs Clayton McMillan, ganhou a Championship e subiu de divisão em 2019, tendo sido capaz de atingir as meias-finais da Premiership, um feito que não era alcançado desde 2013;

Salesi Rayasi foi o melhor marcador de ensaios com 15, enquanto Ash Dixon terminou em 2º com 9, seguindo-se em 3º lugar Jacob Kneepkens com 8 toques de mão concretizados, enquanto Joe Webber, Freedom Vahaakolo e AJ Lam fecharam a época com 7 ensaios;

256 jogadores marcaram pontos durante a época – Gatland com 119 foi o melhor, enquanto em último lugar está Aidan Morgam com 4 – perfazendo um total de 3677 pontos na extensão de 76 jogos. 236 marcaram ensaios, o que deu um total de 460 ensaios;

Jason Rutledge foi o atleta mais velho a participar na temporada e Anton Segner (nascido na Alemanha e que foi para a Nova Zelândia em 2017) o mais novo com 18 anos;

Damian McKenzie foi o único jogador dos All Blacks que tendo só jogado 3 jornadas, foi capaz de ficar na tabela dos 15 melhores marcadores no fim da época, com 49 pontos, demonstrando que havia um Waikato antes e depois da “saída” do polivalente 3/4’s;

– Uma prova da competitividade na Mitre 10 Cup é a diferença de pontos que ficou entre o último apurado para a fase-final da Premiership e o último lugar, com Waikato a seguir para as meias depois de terem fechado a fase regular com 27 pontos e North Harbour viram-se relegados depois de terem terminado com 25 pontos;

O 23 DA TEMPORADA DO FAIR PLAY E PORTAL DO RUGBY

Custou-nos deixar de fora vários nomes, mas este é o 23 que convocaríamos para qualquer jogo, seja frente aos All Blacks, Inglaterra, Exeter Chiefs, Toulouse, etc! Nem todos estarão no Super Rugby 2021, mas a larga maioria vai ter a oportunidade de fazer parte do patamar principal de franquias neozelandês no ano que vem:

Foto: Fair Play