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ARTIGO OPINATIVO – O projeto de demolição do Estádio do Ibirapuera pelo Governo do Estado de São Paulo ganhou impulso agora que o pedido de tombamento do complexo foi rejeitado pelo Condephaat. O Complexo Esportivo conta com um estádio de atletismo (que foi usado pelo rugby até 2015, tendo recebido Campeonato Sul-Americano, Campeonato Brasileiro, Paulista e até rugby universitário), um ginásio principal, outro ginásio menor, parque aquático e um palácio de judô. O espaço foi reformado em 2010 pelo próprio governo, que gastou 30 milhões nas obras (antes do ginásio receber o Mundial Feminino de Handebol em 2011.

O projeto agora, no entanto, é de privatizar o espaço, demolir as estruturas esportivas existentes, permitindo à iniciativa privada fazer uma arena multiuso e um shopping no local, com uso de 35 anos. Uma das alegações é que o complexo não tem mais condições de uso e precisa de nova reforma, sofrendo com o abandono de anos. No entanto, tal argumento é no mínimo estranho, pois o estado de São Paulo é governado pelo mesmo partido político há 25 anos. Não vou entrar no debate político, muito menos quero discutir preferências partidárias, mas é um tanto complicado alegar abandono quando quem alega o sucateamento do espaço e defende a privatização é também quem foi responsável por zelar pela manutenção do complexo por um quarto de século (que, na minha contas, não é pouca coisa).

De todo modo, o que está sendo proposto é a transformação de um complexo esportivo em área de eventos e compras. As possibilidades de uma abertura maior tão necessária para o esporte amador, para a comunidade, diminuirão, pois o uso do espaço mudará. O uso que ele deveria ter se não fosse sucateado. É fato que o projeto contempla uma área vagamente especificada para prática gratuita de esportes, mas meia dúzia de quadras (como sugere o projeto apresentado) não são o que São Paulo carece, não são contrapartida alguma.

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É notório que São Paulo é paupérrima em áreas para a prática esportiva, ainda mais levando-se em conta o tamanho da população. Faltam campos gramados, por exemplo, para nosso esporte. As pistas de atletismo em boas condições não preenchem os dedos de uma mão. O projeto é extremamente vago em como a prática esportiva será compensada com novos equipamentos públicos na cidade. E é aqui que mora o absurdo.

O projeto de privatização do complexo esportivo está atrelado a alguma política de ampliação de áreas para a prática esportiva? Está ele atrelado à reforma para a comunidade de outros equipamentos da cidade ou mesmo de construção de novos equipamentos em, por exemplo, novos parques na cidade? É claro que não está. E a cilada toda mora aqui. A maioria das federações esportivas estaduais não têm qualquer força individualmente. Qualquer uma delas que fizer oposição sabe que não tem força pra realmente lutar. Não importa se o complexo é hoje usado ou não pelo rugby (de fato, a Federação Paulista foi favorável à demolição. A Federação Aquática Paulista, apoiada pela CBDA, pede ao governo que reforme ou construa outra piscina em outro lugar para compensar a que será perdida). Se não houver articulação política entre as modalidades esportivas, elas seguirão sem força para cobrarem políticas públicas que pensem na prática esportiva, nos clubes esportivos, nos atletas, na comunidade que vive cada modalidade.

Um projeto que não oferece garantias reais (detalhadas, planejadas, com um propósito maior, ligado à uma política pública para esportes) de novos e melhores equipamentos esportivos públicos na cidade é um projeto que não beneficia rigorosamente nenhuma modalidade. Em cada parque, cada clube municipal, é toda uma nova novela, uma nova luta para se melhorar o espaço esportivo. E aqui mora outro absurdo.

Estamos falando de um terreno público, que pertence ao estado. Qualquer iniciativa privada que queira construir algo (um shopping, por exemplo) precisa comprar um terreno. O terreno do Complexo Esportivo do Ibirapuera é valiosíssimo, pela localização, pelo metro quadrado da região ou pela raridade dele. Há pouquíssimos espaços assim na cidade em zonas nobres. Um shopping teria que gastar uma fábula para comprar um terreno naquela região.

A construção de uma arena definitivamente não é argumento pra nada, afinal, a empresa também irá explorá-la comercialmente, pagar seus custos e lucrar. Ou seja, um terreno que vale ouro (que se não fosse público seria caríssimo), trocado por rigorosamente nada em prol de uma política de prática esportiva. Sendo que o terreno existe hoje justamente para fomentá-la! E não qualquer prática esportiva. A prática que depende de uma pista de atletismo, de um campo gramado, ginásio equipado, piscina. Prática esportiva organizada que não se faz na esquina. São equipamentos que não abundam numa cidade de dimensões colossais, que tem e deveria ter demanda por eles.

Usando uma lógica de mercado bem óbvia, se o estado é dono de um terreno altamente valioso e de interesse público, é inaceitável que ele seja entregue desse modo. Pensemos bem. Imaginemos se a concessão obrigasse reformas e construções de outros equipamentos compatíveis com esses pela cidade, ampliando a oferta de espaços! Tenha certeza que o lucro que uma arena multiuso e um shopping vão gerar pra empresa serão vastos o bastante para isso.

O espaço é tão valioso que o prazo de 35 anos é bem provável que seja renovado no futuro. Sendo ele uma mina de ouro, não é nada improvável que se torne um meio de corrupção, aliás.

Aqui, as federações esportivas pagam o preço de não trabalharem juntas como deveriam. Cada uma delas, sozinha, é fraca e seguirá mendigando migalhas. Enquanto isso, alguém lucra muito com um terreno que é público e ficará pelo menos 35 anos sem servir à vida esportiva da cidade. O espetáculo esportivo que gera dinheiro pode buscar soluções privadas. O esporte que é pobre, não. Uma cidade saudável oferece áreas públicas para o esporte, porque elas educam, ajudam a combater a violência, reduzem os gastos com saúde, tornam a cidade mais produtiva, dão qualidade de vida. Mais importante de tudo, são um direito de todo cidadão.

Quanto ao rugby, um dia tivemos Sul-Americano masculino (2004), Sul-Americano feminino (2005) e finais de Campeonato Brasileiro (a última em 2015) lá no Estádio do Ibirapuera (o Ícaro de Castro Melo). É parte da nossa história (do Rugby e do Portal, afinal, foi onde cobrimos os primeiros jogos). Não é verdade que não temos nada a ver com ele. Hoje, cada jogo da Seleção Brasileira (ou da franquia que vem aí) é um martírio para se definir qual será o estádio. Para piorar, a Seleção Feminina não joga no Brasil desde 2016.

Aceitar esse projeto é enfraquecer o poder da comunidade esportiva de exigir espaços na cidade. Pior que isso, é chancelar que espaços esportivos sejam sucateados hoje para serem vendidos amanhã, por qualquer governo. Cilada pura.