Foto: Lucas Sakai

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ARTIGO OPINATIVO – Este artigo faz parte da coluna Voz do Rugby – a coluna aberta aos rugbiers que querem opinar sobre assuntos diversos sobre o rugby. O artigo não necessariamente representa a opinião do Portal do Rugby. Abrimos o espaço para o debate. Quem quiser enviar artigo, mande-os para contato@portaldorugby.com.br.

O artigo de hoje foi enviado por Cláudio Rinaldi.

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Mais rugby, menos futebol: o dia em que virei casaca

Era um sábado à tarde em Bloemfontein. Eu tinha ficado sabendo que os Cheetahs, o time local, jogariam uma partida de rugby no Free State Stadium, que recentemente tinha sido ampliado e adaptado ao padrão FIFA para receber jogos da Copa de 2010. Depois de ter sido assaltado em Johannesburgo alguns dias antes, eu andava meio avesso à ideia de me enfiar numa multidão de torcedores. Por outro lado, apesar de ser uma das três capitais sul-africanas, Bloem é uma cidadezinha bem pacata e eu já não tinha muito que fazer depois de ter andado por tudo e visitado o museu municipal que, entre outras coisas interessantes, celebra J. R. R. Tolkien, o famoso autor de O Senhor dos Anéis, nascido na cidade.

Acabei indo ao jogo. O ingresso custava 80 rand (uns 20 reais naquela época) e o evento se revelou muito organizado e familiar. Eu tinha comprado um jornal para entender melhor a situação. O campeonato em disputa era o Super Rugby, do qual eu jamais tinha ouvido falar. Os Cheetahs estavam na lanterninha da conferência sul-africana e precisavam muito vencer a equipe neozelandesa dos Chiefs.

Eu já sabia alguma coisa sobre rugby, mas não entendia tudo o que acontecia no campo. Não fazia ideia do que era ou não considerado falta pelo juiz num jogo em que todo mundo parecia estar praticando luta greco-romana enquanto disputava a posse de bola. Mesmo assim, foi muito legal acompanhar o chocolate que o time da casa ia dando no adversário, para delírio dos 15 mil espectadores que ocupavam parte daquele estádio descomunalmente grande para uma cidade do tamanho de Bloem.

O primeiro tempo terminou com 24 pontos de vantagem para os Cheetahs, que fizeram 4 tries contra 1 só dos Chiefs. Logo-logo eu começaria a aprender, porém, que um time que começa com tudo num jogo fisicamente tão intenso corre o risco de entregar a rapadura no final. E não deu outra: os Chiefs marcaram 5 tries no segundo tempo e arrancaram um empate em 43 a 43. Primeira lição: o rugby não é como o futebol, em que um 2 a 0 praticamente fecha o caixão. Num raio de 30 pontos, sempre dá pra buscar uma virada.

Além disso, eu tinha acabado de presenciar algo raro no rugby: um empate. O futebol tem uma média histórica de 25% de empates. Em outras palavras, de cada quatro partidas, uma termina empatada. Nas últimas edições do Brasileirão, com os clubes demonstrando mais medo de perder do que vontade de ganhar, a média tem sido de 30%. No rugby, porém, a média histórica é de apenas 3%, ou seja, um empate em cada trinta e tantas partidas disputadas. Para ter uma ideia, o último empate na primeira divisão do Brasileiro de rugby aconteceu em 2017, e o último antes desse tinha sido em 2010.

No rugby, os empates costumam ser jogaços em que as duas equipes brigam pela vitória até os últimos minutos, mas simplesmente não conseguem superar o adversário e, por isso, saem de campo frustradas. É muito diferente do futebol, em que os técnicos e jogadores saem comemorando um empate como “um bom resultado” só porque não perderam. Essa é uma das razões para que, numa partida de rugby, ninguém entre em campo pensando em empatar. Outra razão é o sistema de pontuação, claro. As equipes pontuam muito mais vezes, então a probabilidade de o placar ficar igual é menor. Dificilmente um time sai de campo sem ter pontuado pelo menos três vezes, e frequentemente pontua em mais de dez ocasiões.

A quantidade de pontos atribuída a cada jogada bem sucedida também ajuda a evitar empates: 7 pontos (try convertido), 5 pontos (try não convertido) ou 3 pontos (penalty ou drop goal). O fato de as faltas cometidas poderem render 3 pontos ao adversário torna o rugby um jogo mais limpo do que o futebol. Fazer falta nunca vale a pena, e as equipes que fazem faltas demais quase sempre perdem o jogo. O fato de ser possível pontuar não apenas com um try, mas também por meio de chutes, deixa os jogos mais equilibrados. Mesmo que uma equipe não tenha um ataque fabuloso, ela ainda assim terá chance de vencer sem precisar jogar na retranca.

A disciplina torna o rugby mais prazeroso de ver do que o futebol. Para começar, só o capitão tem autorização para conversar com o juiz, e sempre de forma respeitosa. De vez em quando algum jogador se exalta e ouve do juiz algo como, “This is not football!” É o que basta para acalmar os ânimos. Se não bastar, o cartão amarelo tira o jogador da partida por 10 minutos e traz um baita prejuízo para o time dele. Ninguém quer pagar pra ver.

A arbitragem do rugby é um show à parte. Toda a conversa entre o juiz, os bandeirinhas e o TMO (árbitro de vídeo) é ouvida pelo público do estádio e da televisão. Quando o juiz pede para rever um lance, todo mundo revê junto no telão e entende qual é a dúvida que levou ao uso da tecnologia antes de validar um try ou mostrar um cartão vermelho. Se o lance é obscuro demais, os espectadores e os próprios jogadores também ficam em dúvida e acabam absolvendo o juiz por empatia, concordando que era realmente difícil mesmo após várias repetições em câmera lenta. O futebol, além de ter demorado demais para introduzir o vídeo, se recusa a adotar a transparência do rugby, o que leva o tempo todo a especulações sobre a honestidade das decisões tomadas.

A cronometragem do rugby também é mais inteligente. O relógio não fica travando como no basquete, mas também não corre livremente como no futebol. O juiz determina a paralisação do tempo sempre que algo excepcional interrompe o jogo: uma lesão grave, uma expulsão, uma revisão de jogada. Isso basta para inviabilizar a cera. Uma coisa curiosa é que podem ocorrer breves atendimentos médicos dentro do campo sem que o jogo seja paralisado. Outra é que, embora não existam acréscimos, a última jogada deve prosseguir até a sua conclusão, ainda que o tempo regulamentar tenha se esgotado.

Eu só me tornei um espectador regular de rugby há uns dois anos, quando criei coragem de assinar uma tevê paga. De lá pra cá fui descobrindo que muita coisa pode ser vista na Internet, sem depender tanto da televisão. Passei a entender mais e a gostar mais, também. Ainda acompanho o futebol, mas vejo bem menos jogos do que noutros tempos, e fico cada vez mais desiludido com o rumo que a globalização deu a esse esporte. Nem com retrancas horripilantes os clubes tradicionais conseguem ser competitivos, de modo que apenas os times muito ricos ainda têm algo para exibir à plateia. Tenho a impressão de que, daqui a poucos anos, não haverá mais do que cinco clubes no mundo, todos europeus, a cujos jogos valerá a pena assistir, desde que joguem uns contra os outros. A implantação arrogante do VAR, sem aprender absolutamente nada com a experiência do TMO, foi uma espécie de gota d’água, porque deixou os jogos ainda mais chatos, condicionando o grito de gol a uma espera de cinco, dez minutos, e sem garantia de que o juiz tomará a decisão correta.

É claro que o fato de o rugby ter se profissionalizado apenas nos anos 1990 colabora para esse ambiente mais leve. O dinheiro que o esporte movimenta é alto, mas nada que chegue perto dos valores astronômicos do futebol. Existem rivalidades entre clubes, mas não a ponto de as torcidas precisarem ser separadas dentro do estádio como se fossem rebanhos de espécies distintas. Ano passado fui ver um jogo da seleção brasileira no Pacaembu. Era uma partida oficial contra o Uruguai, válida pelo Americas Rugby Championship, um torneio pan-americano anual que reúne as seis melhores seleções do continente. Gastei 26 reais com o ingresso e vi o jogo do melhor ângulo possível, numa noite de sábado, acompanhado por um público tranquilo de 3500 pessoas, com muito mais conforto e segurança do que eu teria num jogo de futebol.

Aos poucos, porém, a grana começa a falar alto e a entrar em choque com os interesses esportivos. O Super Rugby, por exemplo, que é uma espécie de Libertadores do hemisfério sul, incluía apenas times da África do Sul, Nova Zelândia e Austrália na época em que eu fui ver aquele jogo em Bloemfontein. Passou a ter um time argentino e um japonês desde então, e hoje já se cogita a entrada de times norte-americanos, muito mais pelo mercado consumidor atrelado a eles do que pela elevação do nível técnico do campeonato. Há dois anos, a franquia dos Cheetahs foi excluída e, felizmente para a pequena Bloem, foi aceita numa liga europeia que reúne times celtas e italianos.

Por mais que o dinheiro o desvirtue, porém, o rugby promete continuar sendo um esporte de cavalheiros por pelo menos mais uns dez anos, equilibrando as suas tradições com as inovações que, se nem sempre agradam ao público, ao menos são debatidas democraticamente pelos dirigentes com os times, os jogadores, a imprensa e os fãs antes de serem implantadas. Até quando dura essa lua de mel sem que o toque de Midas a transforme em lama, não me atrevo a profetizar. Que a paixão seja eterna enquanto durar.