Foto:: FECORUGBY

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ARTIGO OPINATIVO – O show de horrores esteve solto no rugby brasileiro depois de um pseudo-rugbier falar que “rugby feminino não é rugby e nem feminino”. Muita gente criticou todos os lados. Aos que criticaram nossa postagem no Instagram, fica a pergunta: existe alguma situação que falar isso é justificável? Se achar que existe, é grave. É como acreditar que existe desculpa pra ser racista, por exemplo.

Se a defesa dessa asneira for apenas em nome da “liberdade de expressão”, então aprenda que a resposta virá, pois fato é: tem muita gente que em seu íntimo concorda com aquela frase, e por isso mesmo não gosta do assunto rugby feminino ser trazido a público.

Entre os homens, é corriqueiro ouvir de amigos exatamente isso: “rugby feminino não é rugby e nem feminino”. Todo mundo sabe disso, porque todo mundo ouve isso.

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Porém, o contexto na verdade é de dívida do rugby brasileiro com o rugby feminino, que nos colocou no Top 11 do rugby mundial, 3 vezes na Copa do Mundo e agora nos Jogos Olímpicos por mérito, pelo resultado em campo (algo essencial para se justificar diante de quem ajuda a financiar o esporte, como o Comitê Olímpico, por exemplo).

Defender o rugby feminino é uma luta de longa data e que ainda tem longo caminho. Para que ela seja real, e não mera retórica, é preciso dar voz às mulheres do nosso rugby.

O Portal do Rugby conta com uma coluna especial para os leitores e leitoras mandarem textos opinativo: a “Voz do Rugby”. É pelos últimos eventos que a “Voz do Rugby” está chamando a colaboração para que textos opinativos de mulheres cheguem a nós. Isto é, textos que problematizem os desafios da categoria no Brasil e no mundo.

Se falta dar mais voz, o espaço está aberto para essa voz se manifestar. O email para a “Voz do Rugby” é victor@portaldorugby.com.br.

 

Rugby feminino no Portal

Em 11 anos de existência, o Portal do Rugby sempre se comprometeu em cobrir tudo o que rola no rugby feminino. A mesma cobertura dada às seleções masculinas é dada às femininas, no entanto, infelizmente, as Yaras quase nunca jogam em solo brasileiro (e isso dificulta tudo). Publicamos sobre todos os torneios nacionais e estaduais, ainda que muita gente não perceba que somos um veículo com recursos financeiros e humanos limitados e que, portanto, precisamos de colaboração de federações, clubes, árbitros, atletas, treinadores, para conseguirmos caminhar e informar corretamente. A colaboração existe, mas sempre há necessidade de melhorar.

Sobretudo no caso de atividades fora das federações, é estarrecedor como acontecem jogos e torneios sobre os quais ninguém nos reporta. Chegamos muitas vezes ao ridículo de recebermos a crítica de que há mais jogos masculinos listados, quando temos tudo que chegou a nós listado e não temos culpa que há menos jogos femininos rolando. Críticas que são incompreensíveis (mas “segue o jogo”). E, no fundo, o mesmíssimo (a falta de informações) ocorre com o masculino, mas nota-se menos porque há abundância de jogos.

Advogamos como poucos sobre a necessidade de se desenvolver o XV feminino, sobretudo quando ninguém falava no assunto. Quem tem memória, sabe. Falamos toda semana do Six Nations Feminino, dos amistosos internacionais, não é acaso. Infelizmente, o retorno do público é baixo (o que não desestimula a seguir).

Curiosamente, a quantidade imensa de publicações que fazemos se volta contra nós mesmos. Por termos uma dezena de artigos diários, quem não acessa o site diariamente evidentemente perde publicações. Ainda assim, somos cobrados que “não publicamos algo”, quando no fundo publicamos. Em muitos casos, o problema é quem não viu a publicação!

E quando não publicamos algo? Volta a máxima da “bola de cristal” e da colaboração externa. Ninguém do Portal tem dedicação exclusiva ao site e, com isso, uma ajuda (antes de “levar porrada”) é o que realmente resolve. Afinal, só acha que não valorizamos a modalidade feminina quem simplesmente não acessa o site, não ouve nossos podcasts, não acompanha as redes sociais ao longo dos nossos 11 anos de existência. Ou melhor, acompanha, mas pouco (logo, não vê tudo).

Até o final de 2018, um dos três editores do Portal era uma mulher, a Maria Freire, que muito contribuiu conosco, mas seguiu seu caminho por outras prioridades profissionais. Ou seja, a voz feminina está presente na nossa trajetória. Entretanto, colaboração com o Portal é um exercício de poder dedicar tempo livre com regularidade à “causa”. Existimos há 11 anos porque não aceitamos lacunas. Não existe o dia que “não deu pra publicar”. Não existe publicação com dias de atraso. Foge à nossa filosofia.

Como me disseram uma vez, “há menos mulheres colaborando com o Portal simplesmente porque há muito a se fazer dentro dos clubes em prol do rugby feminino, que é menor e precisa demais de todos os braços”. Não sei se isso é verdade. Talvez seja, talvez não seja. Na dúvida, talvez falte frisar mais que o espaço está aberto à participação.

 

Consciência da trajetória

A história do rugby feminino é de pura luta contra a repressão e é preciso ter consciência disso. Muitas praticantes não sabem, mas somente em 1995 o International Rugby Board (IRB, atual World Rugby, a federação internacional) passou a reconhecer o rugby feminino, isto é, assumiu a responsabilidade de organizá-lo e incentivá-lo.

O ano de 1995 é especial no rugby, pois marca a virada completa na história do esporte. Após a Copa do Mundo de 1995, envolta pela história de Mandela unindo a África do Sul, o IRB votou por amplas reformas no esportes, sendo as principais a admissão do rugby feminino e a permissão ao profissionalismo no rugby. Para quem não sabe, pagar jogadores de rugby era proibido no mundo todo até 1995 pela própria federação internacional.

Até 1995, o rugby feminino operava quase na clandestinidade, com federações pelo mundo que não tinham reconhecimento oficial dos órgãos esportivos. O desincentivo prevalecia – isso quando a modalidade não era perseguida, colocada na ilegalidade.

No Brasil, por exemplo, a Ditadura Militar proibiu expressamente que as mulheres jogassem rugby. Em 02 de agosto de 1965, já na ditadura militar, a Deliberação n.º 7, assinada pelo General Eloy Massey Oliveira de Menezes, presidente do Conselho Nacional de Desportos, delimitou quais esportes seriam vetados às mulheres: “Não é permitida [à mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball”. Tais restrições só foram revogadas em 1983, com o fim da Ditadura.

Para quem não ouviu ainda, fizemos um programa de podcast especial contando mais sobre a história e a geografia do rugby feminino pelo planeta.

Com a modalidade sendo olímpica, hoje há investimento crescente no rugby feminino no mundo todo e o profissionalismo é realidade no sevens, enquanto no XV há países no curso de criarem uma estrutura profissional de fato. Trata-se de um percurso que o futebol já trilhou, ainda que o caminho da bola redonda entre as mulheres seja ainda muito longo para ser o ideal.

Por outro lado, o bilionário futebol americano traz um dos piores exemplos possíveis em termos de desigualdade, quando pouquíssimas universidades americanas têm a categoria feminina e a única chance de uma mulher ser profissional é literalmente jogando de biquíni numa degradante e absurda liga que existe nos EUA.

Ou seja, o caminho é longo para o rugby feminino, mas o trilho foi encontrado e agora é preciso exercer voz.