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É quase impossível arranjar uma boa entrada para resumir em duas linhas o quão brilhante foi a Argentina – não em rugby jogado, mas sim a nível de concentração, trabalho árduo e agressividade de alta intensidade – e repetir as mesmas palavras como história foi feita, ou que é imperdível o que aconteceu fica sempre aquém do quão espectacular foi o feito para os Pumas. A vitória da Argentina ante os All Blacks será relembrada para sempre como um dos eventos mais históricos da modalidade oferecendo ao Tri Nations todos os epítetos necessários para ser lembrado e visto como uma das edições mais inesquecíveis do rugby de seleções do Hemisfério Sul.
MVP: Nicolás Sánchez (Argentina)
Todos os 25 pontos vieram da bota ou das mãos do abertura da Argentina, que relembrou a tudo e todos que é dos maiores na sua posição no rugby atual, efetuando uma exibição memorável frente a um adversário supostamente impossível de derrotar.
Sánchez foi uma das unidades galvanizantes dos Pumas, enchendo o campo com todos os toques e pormenores que se esperam de um nº10, transitando entre aquela magia volátil e indecifrável para um maestro de orquestra astuta, sério e completamente frio, oferecendo todas as “armas” necessárias para que a Argentina nunca perdesse o controlo do jogo, um pormenor essencial no caminho para obter a vitória no final dos 80 minutos.
É importante que as pessoas revejam o jogo e percebam a calma com que Nicolás Sánchez falava, corrigindo detalhes no ataque ao mais ínfimo pormenor, sem esquecer do trabalho defensivo e de comunicar com os seus colegas a maneira como a linha defensiva tinha ou não de pressionar, fazendo esse trabalho de excelência com Tomás Cubelli e Santiago Carrerras, e isto conferiu todo um sentimento de estabilidade e equilíbrio a um conjunto de jogadores que mantiveram a mesma postura do princípio ao fim do encontro.
Por vezes pode faltar a Nicolás Sánchez aquela velocidade estonteante dos aberturas mais espetaculares, como Beauden Barrett ou Richie Mo’unga, ou o capricho total nos pontapés táticos, caso de Handré Pollard, mas o argentino é um dos maiores pensadores de jogo que há, lendo bem as situações, percebendo qual a melhor forma de sair a jogar e quais são as opções credíveis para conferir força e astúcia aos Pumas, como aconteceu nesta vitória histórica em 2020.
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The Tackling Machine: Marcus Kremer (Argentina)
Por erro nosso, o melhor placador do encontro entre Pumas e All Blacks não foi Tyrel Lomax (15 placagens efectivas, uma falhada) mas sim Marcus Kremer, 3ª linha dos Pumas que completou um recorde de 28 placagens e errou o alvo em apenas por duas ocasiões, tendo ainda conseguido três turnovers naquela que foi uma das exibições mais sensacionais de defesa do asa da Argentina. Kremer foi capaz de terminar o encontro com quatro placagens dominantes, arrastando os seus alvos e colidindo com toda a força no chão, naquilo que foi uma invocação do que há de melhor no rugby argentino: paixão, agressividade e compromisso. O asa, que jogou com a camisola nº7, imperou em dois aspectos fundamentais: placagem compacta e de total dureza; e rápida reposição na linha defensiva após cair no chão.
São elementos que separam os patamares de bons e grandes defesas, uma vez que os primeiros conseguem apresentar uma placagem segura e geralmente eficiente, enquanto os segundos, como Kremer, são capazes de placar de maneira agressiva, aguentar o ritmo e intensidade física, saindo rapidamente do chão para voltarem a se apresentar como unidade de defesa, galopando sempre no sentido de ser uma unidade activa em todo o espectro.
Poderá lhe faltar algo no espectro ofensivo, em termos de maior visibilidade e eloquência, mas ter um elemento da craveira defensiva de Kremer no elenco permite a qualquer seleccionador ficar descansado, pois garante placagem após placagem, resiliência total no contacto e uma fisicalidade que parece torná-lo num jogador de uma dimensão superior.
Melhor treinador: Mario Ledesma (Argentina)
A Argentina não jogou de forma espetacular, não, nem fez uma exibição a nível ofensivo estonteante como mostram as duas quebras de linha e seis defensores batidos no total das 79 entradas que fizeram com a bola na mão, ou poucas jogadas extraordinárias surgiram durante o encontro. Contudo, para se ganhar aos All Blacks não se precisa de jogar bonito, tem é de se jogar bem e de maneira efetiva, de saber parar o ritmo quando necessário, de ser altamente lutador e irritante no tackle, ruck e breakdown, de querer limitar todas as ações do adversário, mesmo que isso represente um risco em termos de causar penalidades ou faltas – que na maioria das vezes não foram vislumbradas, atenção como os dois tackles sem bola efetuadas a Richie Mo’unga e Anton Lienert-Brown -, mas que no final das contas representem pequenas vitórias durante o encontro para no final se dar a festa total.
Os Pumas foram totalitários no scrum, dominantes no alinhamento, destruidores no contacto bloqueando ações de ataque perigosas da Nova Zelândia, por diversas vezes, resgatando toda uma emotividade e intensidade necessária para fazer frente a uma sempre possível reviravolta dos All Blacks, impedindo assim que se desse uma reviravolta no marcador de jogo. Por vezes foram excessivamente agressivos no contacto, levantando picardias com o bloco contrário, mas foi tudo uma estratégia da equipa técnica de Mário Ledesma, que procurava tirar os All Blacks da sua zona de conforto a nível mental e arrastá-los para um campo em que só os melhores não se deixam incomodar ou afectar… e, por mais estranho que pareça, os jogadores neozelandeses deixaram-se afectar ao ponto de terem perdido a sanidade mental para tomarem as melhores decisões.
Ledesma trabalhou bem os pontos mais fortes da Argentina, não se preocupando tanto com a execução técnica da manobra ofensiva ou de quererem ser tão arriscados no ataque como são os All Blacks, optando por jogar de maneira pausada na maior parte do tempo, acelerando só quando viam abertura para tal e tentando não abrir falhas na cobertura ao portador de bola ou no apoio ao ruck.
Para aqueles que diziam que a Argentina ia ser completamente atropelada, espezinhada e destruída neste Tri Nations 2020, bem é altura de repensarem realmente no que sabem sobre desporto e atividade física, tentar perceber o que os Pumas fizeram durante este tempo todo de paragem e aceitar que a morfologia e capacidade mental de um dado tipo de jogador/nação pode fazer total diferença no final de contas. Lembrar que os Pumas chegaram à Austrália e agendaram dois encontros amigáveis com uma equipa “B” dos Wallabies, tendo ganho ambos os encontros e acertando assim os pormenores e detalhes técnicos e táticos até atingirem a plenitude das suas capacidades, mostrando toda a clarividência necessária para chegar ao objectivo final: ganhar.
“If I tell you what it means I won’t be able to talk.”
Super Mario. ❤️pic.twitter.com/wMKzaqrJoS
— RugbyLAD (@RugbyLAD7) November 14, 2020
Decepções: All Blacks vulgarizados… até quando?
Uma quebra-de-linha, 7 defensores batidos, 8 offloads (outros 6 erraram o alvo), 45% de posse de bola e 44% de território, estes são os números finais de uma exibição carregada de erros gritantes e de dúvidas perenes não só nas escolhas tomadas (Jordie Barrett não serve como ponta e Shannon Frizell é um jogador que transita de uma prestação auspiciosa para algo errático e frágil) como na estratégia escolhida ou na lógica de jogo procurada. Os All Blacks foram, no mínimo, um grupo de jogadores desconjuntos, sem capacidade mental para se sentirem como uma equipa una e dura, demasiado sensíveis às picardias do adversário e que nunca foram consistentes nas fases de jogo, perdendo o controlo da oval de forma atabalhoada e demasiado displicente, mostrando assim uma desorientação mental preocupante ainda mais quando se está a falar dos All Blacks, a suposta melhor equipa a nível de seleções do Mundo.
Durante toda a extensão dos 80 minutos a Nova Zelândia parecia incomodada e frágil, entrando no jogo mental da Argentina e sem capacidade para fugir dele quando era mais necessário, perdendo alinhamentos, cedendo nos scrums, atirados para trás no contato e sem o virtuosismo técnico para encontrar ou abrir um espaço na linha de defesa contrária, com todo o plano de jogo a ser posto em causa e sem qualquer utilidade para o que os adversários conseguiam ou não fazer.
A intensidade foi estranha, não existindo aquela eletricidade típica dos All Blacks, ficando completamente entregues aos individualismos das suas principais unidades, esperando que estes resolvessem todos os problemas através de uma jogada brilhante e que ao mesmo tempo servisse para destruir com a força mental dos Pumas… porém, isto só poderia acontecer se Ian Foster tivesse escolhido os jogadores certos para o encontro, seja meter Damian McKenzie como 15 e Will Jordan numa das pontas (ou vice-versa) removendo Jordie Barrett, voltar a confiar em Beauden Barrett como nº10, dar esperança a TJ Perenara e chamá-lo para o banco de suplentes para jogar de início como resposta à prestação menos boa da semana passada ou de colocar Rieko Ioane nos centros, procurando assim um jogo mais volátil, mais acelarado e de risco superior, em troca de deixar o pragmatismo táctico de lado, uma estratégia que já não convence nos dias de hoje, pelo menos quando imposto isto aos All Blacks.
Ian Foster continua a cometer erros sérios e, a par de John Mitchell (que foi selecionador durante dois anos, tendo na altura 38 anos, ou seja, demasiado novo e sem experiência para assumir a seleção perdoando-se parte dos erros cometidos), tem tido um dos piores arranques como selecionador da Nova Zelândia com 2 vitórias, 2 derrotas e 1 empate. A culpa não está nos jogadores ou na falta de “profundidade” de escolhas, mas sim naquilo que o corpo técnico quer continuar a impor em termos de estratégia e lógica de jogo, resistindo erradamente ao que esta nova escola de jogadores neozelandeses conseguem fazer.
Números
Mais metros conquistados: Caleb Clarke (Nova Zelândia) – 42 metros;
Mais tackles: Marcus Kremer (Argentina) – 28 placagens (2 falhadas);
Mais turnovers: Pablo Matera (Argentina) – 3;
Mais defensores batidos: Richie Mo’unga (Nova Zelândia) – 2;
MVP do Fair Play: Nicolás Sánchez (Argentina)