Foto: Bruno Ruas @ruasmidia

Tempo de leitura: 9 minutos

ARTIGO OPINATIVO – Artigo da coluna de Francisco Isaac, em parceria com o Fair Play.

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Já não bastava o facto do Super Rugby e toda a competição profissional, semi-profissional e amadora masculino e feminino ter parado no rugby australiano – para além dos escalões de formação -, como se iniciou uma luta pelo poder da cadeira de CEO da Federação de Rugby da Austrália, depois da demissão de Raelene Castle após alguns anos de intenso conflito e críticas à gestão de um dos desportos mais importantes deste país da Oceania. Mas realmente o que está em causa e o que levou a este momento de ruptura que pode forçar a um cenário de make or break para o “universo” da bola oval australiana?

 

A HERANÇA ENVENENADA QUE INICIOU UMA SÉRIE DE PROBLEMAS

2017 marcou o ano em que Raelene Castle entrou pelas portas da Rugby Australia para assumir o lugar de CEO de uma instituição que já estava envolvida em intensa crítica devido à expulsão da Western Force do Super Rugby em favor da manutenção dos Melbourne Rebels. Esta é considerada uma das decisões mais controversas da RA (acrónimo para Rugby Australia) pois optou pelo dinheiro e estrelato fácil de uma cidade como Melbourne, invés de continuar a apostar na região que mais alimentava o rugby de formação na Austrália como era na zona de Perth, ou seja, o dinheiro falou mais alto do que o impulsionar do rugby juvenil com a Fox Sports Australia a ter um papel de relativa importância, pois constantemente vociferava notícias e artigos de opinião de ridicularização do projecto e qualidade da Western Force.

A disputa interna começou a estalar então em 2016, logo após um Mundial de Rugby de relativo sucesso para os Wallabies tendo chegado a uma improvável final – eram dos favoritos, mas poucos acreditavam que Michael Cheika conseguisse colocá-los na luta directa pelo título -, com a expulsão da Force e o início de uma série de processos litigiosos que forçariam o inventar de uma nova competição internacional (Global Rapid Rugby), parcialmente financiada pela própria ex-franquia e pela Rugby Australia. Este pormenor foi só um dos vários problemas que Raelene Castle herdou quando foi conduzida para a posição de CEO da mais importante instituição de Rugby Union na Austrália, e desde o primeiro minuto não lhe foi dado um segundo de paz ou de possibilidade de trabalhar no sentido de reunificar a comunidade de rugby australiana, especialmente no grass roots (competições amadoras e juvenis) ou no conseguir definir num plano concreto para as franquias de Super Rugby.

 

A QUEDA DO SUPER RUGBY: CAUSAS E EFEITOS

Evidentemente 2016 foi o início de quatro consecutivos maus anos para as quatro franquias aussies, tendo só regressado às meias-finais do Super Rugby em 2018 com os Waratahs, apesar de se sentir uma quebra competitiva completa notando-se uma incapacidade constante para fazer frente às formações neozelandesas, sul-africanas (mais equilibrado, mas a melhor equipa do País do Arco Irís derrotava sem grandes problemas a melhor australiana) e até argentina (os Jaguares passaram de um adversário acessível para um temível rival), o que provocou um backlash contra a federação australiana, com os adeptos e imprensa a responsabilizarem-na por este novo paradigma.

O problema das equipas australianas do Super Rugby está em três níveis: equipas técnicas em renovação; saída constante de jogadores de alta qualidade e a fraca ascensão de novas soluções (há excelentes novos jogadores, mas não são no número necessário) e falta de um projecto estável nos Waraths e Rebels, algo que está a ser edificado em Queensland. Os Reds de Brad Thorn estão desde 2018 a renovar as suas fileiras, a estruturar um projecto que em 3/4 anos pode colocá-los nas finais da competição mais importante de clubes do Hemisfério Sul, sendo um side project apoiado pela Rugby Australia, que espera retirar altos dividendos no desenvolvimento da franquia de Queensland. Mas a queda crispante dos Waratahas, a instabilidade competitiva dos Rebels e o pouco interesse do público australiano fora de Canberra nos Brumbies (de longe a melhor franquia australiana e uma das principais do Super Rugby), tem motivado um desinteresse geral dos adeptos aussies no futuro da competição, querendo algo diferente de forma a poderem ser referência novamente seja no rugby de clubes ou selecção, outra “problema” herdado por Castle.

Os Wallabies perderam demasiados jogos nestes últimos anos, transitando entre exibições pobres e boas, numa instabilidade que foi perpetuada tanto pelo approach deficitário de Michael Cheika em termos estratégicos como a falta de soluções para certas posições que forçaria em lançar jovens no rugby internacional quando ainda não estavam preparados para aguentar com a pressão. Chegaram aos quartos-finais do Rugby World Cup, conseguiram garantir uma das maiores vitórias em casa frente aos All Blacks, mas faltaram títulos e esse detalhe foi mais uma vez etiquetado ao trabalho de Raelene Castle enquanto líder da Rugby Australia.

 

A LUTA PELA IGUALDADE E CONTRA O PRECONCEITO…

Outro assunto que ajudou a acentuar a instabilidade directiva foi o caso Israel Folau e as ofensas homofóbicas que o mesmo proferiu via a sua página de Instagram, numa atitude que em nada tem a ver com os valores praticados pela modalidade. Enquanto uma boa parte dos adeptos rejeitou e criticou a postura e discurso de extremismo e distorção religiosa do defesa ex-Waratahs e concordou com a decisão da direcção da Rugby Australia em prescindir dos seus serviços, houve outra parte que acusava a RA de perseguição religiosa e um ataque à liberdade de expressão, sem estes perceberem que discurso de ódio não é de forma alguma admissível dentro dos parâmetros civilizacionais normais que qualquer população almejava viver.

Raelene Castle – com apoio de Michael Cheika e os restantes directores da RA – e a direcção dos Waratahs (em decisões relacionadas com as escolhas para a equipa são completamente independentes da Federação de Rugby da Austrália) acordaram pôr um fim na ligação contratual de Israel Folau, depois de terem tentado que o defesa retirasse os tais posts e efectuasse um pedido de desculpas que permitiria o seu regresso, e acabariam por só ter de “oferecer” entre 2-3 milhões de euros no acordo final entre as partes, bem abaixo dos 15/14 milhões que a equipa de defesa jurídica do ex-Wallaby pretendiam.

Contudo, o Daily Telegraph (tablóide que tem cismado em criar constantes notícias falsas, recusando-se a efectuar pedidos de desculpa quando é comprovado que distorceram, omitiram ou inventaram factos) e a Fox Sports encetaram por uma campanha de descredibilização constante, mais precisamente em relação à capacidade de Raelene Castle ter conseguido segurar o “barco”… em certos dias queriam que uma reintegração de Israel Folau forçada – apesar do impacto que teria e teve em termos da imagem do rugby no âmbito social e humano -, em outros procuravam um settlement que terminasse com a saída do defesa mas com a demissão da administração da RA, entre outros cenários.

Alguns comentadores da Fox Sports para o Super Rugby, chegaram mesmo a afirmar que Folau só tinha sido posto fora porque a Qantas e mais alguns patrocinadores dos Wallabies tinham exigido essa punição para o defesa ou, em caso que isso não se sucedesse, não renovariam o acordo com a RA devido a má imagem e à prática de valores não coadunáveis com o que foi acordado, quando isto seria uma demonstração de amadorismo profundo caso fosse verdade. A Federação de Rugby da Austrália defendeu a igualdade, combateu o preconceito e pôs fim a uma situação que chegou a ter um impacto negativo na imagem da modalidade, com pais de atletas de formação a sentirem que o rugby não era um desporto de aceitação como tanto gostava/gosta de afirmar. Se Israel Folau tivesse sido tão vítima assim, o Rugby League australiano teria facilmente aceitado de volta a suposta “estrela”, mas não só não o fez como criticou a posição do nº15, estando o australiano a jogar neste momento numa franquia de Rugby League da Catalunha, onde já é alvo de constantes críticas por mais uma vez ter afirmado que os bush fires que assolaram a Austrália em 2019/2020 foi ira divina contra aqueles que permitem os homossexuais existirem… isto são acções admissíveis de um atleta profissional e suposto exemplo para os mais novos, que ganha milhões de dolares/euros por ano?

 

OS 11 EX-WALLABIES QUE QUEREM O PODER… EM FAVOR DA FOX

Estes comentadores da Fox Sports, como Rod Kafer, Nick Farr-Jones, George Gregan ou Phil Kearns foram dando voz às suas críticas e ideias nos directos do Super Rugby ou Rugby Championship, aproveitando esse palanque para iniciar uma campanha de anti-Rugby Australia e Raelene Castle, com promessas da chegada de uma nova era caso se desse uma renovação na administração da RA. Estes nomes, e mais uns quantos, ganharam ainda mais poder quando a renovação de contrato de cobertura televisiva entre a Rugby Australia e a FoxTel (Fox Sports) foi alvo de uma “paralisação”, com a RA a optar por ouvir outras propostas, precipitando assim o acentuar desta “guerra”, e que viria a piorar quando surgiu a Optus (outra operadora) interessada em adquirir todos os direitos do rugby australiano, dos Wallabies até ao National Rugby Championship (campeonato de clubes), seja do masculino ou feminino, naquilo que seria algo revolucionário e inovador.

A queda de Raelene Castle implicou, para já, o fim das negociações com a Optus, pois a operadora sentiu que o rugby australiano apresentava claras lacunas no que toca à lealdade e consenso, tendo ainda endereçado críticas à forma como antigos capitães Wallabies apresentaram uma carta a pedir a demissão de Raelene Castle numa prova evidente que o “jogo sujo” acabou por surtir efeitos.

O constante bullying que a antiga CEO da Rugby Australia foi vítima nos últimos dois/três anos é demonstrativo de que o rugby australiano apresenta uma “doença” preocupante em termos de falta de estabilidade, inteligência e equilíbrio caminhando para um cenário mais “negro” e sem rumo aparente. Um exemplo dessa marcha infeliz, é o facto que esses 11 ex-capitães dos Wallabies diziam ter planos para reerguer o rugby na Austrália pré-saída de Raelene Castle, para depois da demissão de ex-CEO afirmarem que não tinham respostas para os problemas actuais do rugby australiano, ficando patenteado a incompetência, falsidade e a mediocridade dos possíveis novos líderes que podem vir a assumir cargos na Rugby Australia – para além de já terem evocado que querem copiar o modelo de rugby neozelandês, quando se sabe que tentar forçar modelos diferentes não é o caminho para o sucesso.

Não há forma de escapar que Raelene Castle tinha em mãos um problema financeiro excessivamente delicado de resolver para a Rugby Australia, mas a verdade é que as suas congéneres da África do Sul (igualmente ou ainda mais complicado, com as suas equipas do Super Rugby a perderem na generalidade a sua capacidade competitiva, para além da contínua perda de activos tanto na forma de jogadores como em patrocínios) e Nova Zelândia (piores resultados económicos dos últimos 10 anos) sofreram de problemas similares e que abre um espectro preocupante para as maiores nações do Hemisfério Sul, fustigadas já pelo abandono de vários atletas profissionais rumo à Europa ou Japão, para além de procurarem soluções para o “crescer” do jogo.

Castle teria muito pouco a ver com os problemas orçamentais da Rugby Australia, mas o facto da ex-CEO ter congratulado o seu trabalho e dos restantes membros da direcção pelo ano 2019 levou a que surgissem os tais bullies a exigirem ainda com mais forças a sua demissão, num sonho de recuperar a oval aussie entoando quase o mesmo discurso que o actual presidente dos EUA “popularizou”, Make the Wallabies great again… só que esse cenário, como tão bem é demonstrado pelo descalabro social-económico-político perpetuado pelo próprio POTUS, é simplesmente um mecanismo para “enganar” quem não se apercebe dos reais problemas e soluções, e principalmente aqueles que ficam fixados em ler e ouvir tudo o que sai da Fox Sports Australia.

Raelene Castle no final foi uma vítima de um rugby condenado pelas memórias do seu passado glorioso, pelos seus antigos jogadores que fazem uso da sua dimensão fora de campo para “agredir” os seus alvos e criar um séquito de seguidores munidos de falta de lógica e coêrencia, com um desejo por um rugby que não tem de obedecer a valores sociais actuais, mas que desesperam por por serem vistos como um activo económico de amplo interesse bafejado por uma suposta boa “imagem”. Ou seja, a Austrália é um contrassenso de si mesmo, sem noção de que o Mundo evoluiu e que poderá perfeitamente se ver refém de outros “jogadores” exteriores ao rugby…