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ARTIGO COM VÍDEOS – Situada na virada da década de 70 para a de 80 na Grã-Bretanha vitoriana, The English Game estreou em 20 de março no Netflix para retratar os primórdios do profissionalismo no futebol. A série é sobre a bola redonda, mas os dramas retratados nela têm também íntima relação com o rugby nesse período.

Abaixo seguem os textos de Caio Brandão, analisando os dramas do futebol na época, e Victor Ramalho, tratando do contexto do rugby no momento retratado pela série.

Não prossiga a leitura se não desejar saber de spoilers da série.

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A série e o futebol inglêspor: Caio Brandão

The English Game tem como protagonistas o operário escocês Fergus Suter, considerado ao lado do amigo Jimmy Love o primeiro jogador profissional do futebol ao ser bancado pelo (hoje extinto) Darwen – e, posteriormente, pelo Blackburn Olympic; e o banqueiro Arthur Kinnaird, inglês que (embora não mostrado na série) defendia a seleção da Escócia, terra de seu pai, cujo banco daria origem ao Barclays, patrocinador principal da própria Premier League nos anos 2000. Essa curiosidade também não é exibida na série, que menciona o rugby uma única vez. Mas é plenamente possível tirar analogias sobre a inflexão vivida pelos dois esportes bretões.

Kinnaird é até hoje o jogador que mais vezes participou da final da Copa da Inglaterra, o mais antigo torneio de futebol no mundo. Foram nove, as cinco últimas pelo Old Etonians, o aristocrático time dominante nos gramados ingleses e além dali: goleiro deles, Francis Marindin era também o presidente da Associação Inglesa de Futebol, cuja cúpula reunia outro colega de equipe, Alfred Lyttelton.

A série começa com um primeiro embate entre Suter e Kinnaird, pela temporada 1878-79, na qual o operário coordena a notável reação do seu Darwen, capaz de empatar em 5-5 um jogo onde perdiam por 5-1 para o Old Etonians pelas quartas-de-final – um fato real. Na série, Suter propõe verbalmente, baseado no costume existente no futebol escocês, de os dois times jogarem uma prorrogação, não prevista nas regras. Kinnaird e Marindin, embora visivelmente acovardados de serem derrotados (até então, nenhum time operário chegara às semifinais da Copa), impõem que prevaleça o regramento, que determina um jogo desempate em outro dia, sujeitando os operários a um desconfortável vaivém ferroviário entre o interior inglês e Londres. Descansados, os Old Etonians, já desconfiados no profissionalismo às escondidas do oponente, goleiam no desempate e avançam rumo ao título.

Mal visto pelos próprios colegas de Darwen não contemplados com um salário discreto para jogar, mas gradualmente tolerado pela injeção de qualidade que proporciona ao time, Suter enfurece-os ao aceitar proposta irrecusável dos vizinhos (e, portanto, rivais) do Blackburn – que propõe um amistoso entre os dois clubes, acertando a divisão da renda. A partida é acompanhada por Marindin e Lyttelton, que deixam-na assim que a tensão em campo se estende às arquibancadas, gerando brigas de torcedores e invasão de campo. Aspirando ser o primeiro time operário a vencer a Copa, o Blackburn segue seu caminho rumo à final com o Old Etonians. Àquela altura, Kinnaird gradualmente se afeiçoa com a causa operária. Cientes disso, os colegas Marindin e Lyttelton marcam sem seu conhecimento uma reunião na Associação Inglesa para, usando como pretexto já tardio a briga campal no amistoso, desclassificar o Blackburn da decisão.

Revoltado com os próprios pares, Kinnaird presta consultoria aos operários, que, embora rivais, se veem unidos contra a prepotência aristocrática da capital, notando que a parceria interna dos times ricos os fortalecia. James Walsh, o fictício presidente do Darwen, acompanha o cartola rival e o controverso Suter para o julgamento do recurso. É quando se desenrola o diálogo abaixo:

Francis Marindin: Estamos aqui para discutir as cenas que vimos durante a partida entre Darwen e Blackburn.
Arthur Kinnaird: Podemos parar de fingir que é por isso? A questão é o dinheiro e a profissionalização.
Alfred Lyttelton: Concordo: “nenhum membro deve receber qualquer tipo de remuneração além dos custos necessários para viagem e hospedagem e o valor do dia de salário perdido em decorrência da participação nos jogos”. Essa é a questão.
Kinnaird: Claro que sim.
Marindin: Todos que se inscreveram sabiam as regras.
Kinnaird: Eles deram duro para chegar à final.
Lyttelton: E o time que derrotaram na semifinal? Os Old Carthusians obedeceram as regras, e não chegaram à final por causa deles.
Fergus Suter: Perderam porque nosso time era melhor.
Lyttelton: Com jogadores irregulares.
Suter: Eram onze contra onze.
Marindin: O senhor foi pago para jogar ou não? Foi subornado para mudar de time?
Sutter: Não fui subornado. Fui pago por minha habilidade e para entreter o público, que paga caro para me ver jogar.
Marindin: (risos) Então admite. Admite que foi pago.
Suter: (após silêncio) Por favor, pensem no significado do jogo para o povo de Blackburn. Eles não têm muita coisa. Trabalham duro a semana toda, aguardando o sábado, para poderem torcer pelo time deles e esquecer a labuta diária. Expulsando nosso time, não estão castigando só os jogadores. Estão castigando todo o público, que está sempre presente, faça chuva ou sol. Isso não está certo e acho que um bom homem entenderia isso.
Marindin: Pois bem. Certamente defende suas ideias com entusiasmo, mas… regras são regras. Mantemos a decisão. O Blackburn foi expulso da final.
James Walsh: (após silêncio) Sendo assim, é com pesar… que entrego isso. A Associação de Futebol de Lancashire não pertence mais à organização. Nenhum dos nossos times participará da próxima Copa.
Marindin: É uma pena.
Walsh: E pode esperar mais cartas: de Yorkshire, Sheffield, Lincolnshire, Staffordshire e quase todos os outros condados.
Lyttelton: Acha mesmo que as pessoas levarão sua organizaçãozinha a sério?
Kinnaird: Talvez levem, se eu for o presidente.
Marindin: Sabia que afogaram um homem?
Kinnaird: Do que está falando?
Marindin: Foi em algum lugar do norte.
Lyttelton: Perto de Derby.
Kinnaird: Isso fica no centro.
Marindin: Norte o suficiente. Durante o jogo do Shrovetide. Operários de cidades rivais brigaram para ir de uma ponta de Ashbourne à outra. No ano passado, afogaram um homem. E não foi a primeira vez.
Kinnaird: Ainda não entendi a lógica.
Marindin: O jogo deles é assim, Arthur. Nós criamos as regras. Deixamos o jogo civilizado.
Kinnaird: Então´só devemos jogar entre nós? Eton, Charterhouse, Harrow, Winchester? Querem um torneio exclusivo? Vamos nos autocoroar campeões da Inglaterra?
Marindin: Por que está fazendo isso?
Kinnaird: Francis, não é porque criamos as regras que o jogo é nosso. Quanto mais impuserem regras para que os times universitários dominem, mais rápido nos tornaremos irrelevantes. Eles seguirão sem nós. Em menos de cinco anos, o torneio deles dominará o jogo e a FA não valerá de nada. É isso o que querem? Não estão vendo? Todo ano, aparecem pelo país dúzias de novos times ansiosos para participar da Copa. E não vai parar por aí. O futebol se espalhará para além do Império. Já está acontecendo. Europa, África, Estados Unidos, América do Sul. Querem mesmo impedir isso? Acham que são capazes?
Marindin: Então vamos entregar o futebol aos operários (murro na mesa)?
Kinnaird: Devemos dividir o futebol com os operários, sim. Aceitem que eles joguem a final.
Lyttelton: Não.
Kinnaird: Por favor.
Lyttelton: Por que está fazendo isso?
Kinnaird: É o certo a se fazer, Alfred.
Lyttelton: Mas por que você está fazendo isso? Você deveria ser…
Kinnaird: Um de nós?
Lyttelton: Meu amigo.
Kinnaird: Alfred, isso… isso é maior do que uma amizade. Isso é maior do que todos nós. Devem entender isso.

Ao fim, mais do que os românticos e inebriados argumentos invocados por Suter quanto à honra, prevalece a ameaça de isolamento levantada pelos profissionais. A muito contragosto, o Blackburn é admitido em uma final cheia de licenças poéticas. Nos letreiros finais, informa-se que Kinnaird assumiria a presidência da Associação Inglesa em 1885, com sua gestão logo liberando um profissionalismo aberto. No diálogo transcrito acima, ele vê que uma intransigência tornaria sua bolha irrelevante. Calhou que isso aconteceu mesmo com a liberação do profissionalismo, a atrofiar as equipes que permaneceram amadoras; o ano de 1885 foi justamente o último em que a Copa da Inglaterra teve um clube amador como finalista – curiosamente, os escoceses do Queen’s Park, que mantiveram essa tradição exatamente até o ano passado, ainda que ela o tornasse minúsculo diante da ascensão dos “novatos” Celtic e Rangers.

Possivelmente pelo futebol ter feito as concessões aos operários a partir de 1885 é que, dez anos depois, em cenário similar entre a União Inglesa de Rugby (RFU) e operários do norte inglês, o desfecho foi totalmente diferente – gerando uma bifurcação.

 

O rugby nesse momento – por: Victor Ramalho

The English Game não aborda o rugby, mas as duas modalidade, futebol e rugby, disputavam espaço entre si naquele momento tanto entre a classe dirigente como entre o operariado. Trata-se do mesmo contexto, do mesmo processo que o exposto pela série.

Na Inglaterra, em 1875, a FA (a federação de futebol) contava com 78 clubes filiados, ao passo que a RFU (a federação de rugby) tinha 113 clubes. O rugby entrara nos anos 1870 como mais popular que o futebol e contando inclusive com clubes de operários, sobretudo no Norte do país (na região retratada pela série da Netflix). Uma das ausências da série (mas compreensível, pois não faria muito sentido para a trama de sua narrativa) é que havia mais clubes de rugby de operários do que de futebol naquela região. Entretanto, não havia muita separação entre futebol e rugby na época. Muitos jogadores e muitos clubes praticavam ambos, trocavam de um para o outro com regularidade. Afinal, ambos eram duas versão de um mesmo esporte para as pessoas da época: Association Football e Rugby Football, ambos eram versões de football. O que os diferenciavam eram as regras (e, portanto, a instituição reguladora que as contralavam: FA ou RFU).

O que mudou? O grande momento de virada da situação é justamente a criação da FA Cup (a Copa da Inglaterra) pelo futebol. O rugby cogitou o mesmo, mas a RFU vetou a ideia. Isso significou que o futebol ganhava um atrativo extra: o prestígio advindo de um troféu nacional. A FA Cupo foi criada em 1871, mas seu sucesso entre os clube de operários não foi imediato – e o título do Blackburn Olympic, retratado na série, é o marco. A FA foi mais além, permitiu o profissionalismo em 1885 e, em 1888, criou a liga.

O rugby se provou um defensor mais inflexível do amadorismo. No Norte da Inglaterra, mesmo com a negativa da criação de uma copa nacional, duas competições regionais foram criadas e geraram grandes interesse dos clubes e do público: a Copa do Yorkshire e a Copa da Lancashire, duas regiões industriais, repletas de clubes de trabalhadores. Tais copas mobilizaram clubes da região e a questão do profissionalismo também se tornou importante para o rugby.

É justamente nos anos 1889-1890 que o futebol vai tomando o “primeiro lugar” do rugby no cenário nacional na Inglaterra, pelo profissionalismo e por suas competições. Em 1895, o momento decisivo para o rugby foi a proposta de seus clubes operário do Norte (os que se mantinham fieis ao jogo e não mudaram para o futebol) de liberação do pagamento aos jogadores. Nova negativa da RFU levou ao racha e à criação de uma entidade rival, hoje conhecida como RFL. É o nascimento do Rugby League, cujos clubes, agora independentes da RFU, promoveram modificações nas regras do jogo e criaram uma modalidade distinta.

 

Indicação de podcast

Para ir mais a fundo sobre os temas expostos na série, sugerimos o podcast Rugby Reloaded, do historiador Tony Collins, que traz uma visão crítica sobre o tema e a série, que traz uma visão romântica sobre um momento história que é mais complexo.