Foto: David Ramos - World Rugby via Getty Images

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ARTIGO OPINATIVO – O presidente reeleito do World Rugby (a federação internacional) Bill Beaumont prometeu em sua campanha que defenderá permitir que um jogador troque de seleção nacional. Tal possibilidade é uma demanda das Ilhas do Pacífico (Fiji, Samoa e Tonga), que gostariam de poder contar no futuro com atletas que defenderam já outras seleções (como Austrália, Nova Zelândia, França, Inglaterra…).

Atualmente, o rugby segue o mesmo modelo do futebol e proíbe tais trocas. A lei entrou em vigor em 1º de janeiro de 2000 e antes disso era permitido atletas mudarem de seleção – o que mostra que a proibição não é uma “tradição” do rugby. Atletas são elegíveis para defender um país pelos seguintes critérios:

  • ter nascido no país (nascimento);
  • ter pais ou avós do país (ascendência);
  • ter vivido por ao menos 60 meses no país (residência);

É importante ressaltar que muitos jogadores já defendem seleções nacionais de países dos quais não são cidadãos. No mundo, ser cidadão de um país e ter direito ao passaporte do mesmo não segue um padrão. Há países que consideram cidadãos qualquer pessoa nascida em seu território (é o jus sollis, seguido no Brasil, por exemplo). Porém, há países que não concedem cidadania por local de nascimento, concedendo cidadania apenas por ascendência, isto é, caso algum dos pais seja cidadão (jus sanguinis). Há ainda países com sistemas mistos, que misturam os dois conceitos. Por tais razões, o World Rugby usa os três critérios e, consequentemente, permite, por exemplo, por tempo de residência, um atleta que não tenha passaporte de um país defender a seleção nacional.

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Hoje, a única forma de um atleta trocar de seleção é pela chamada “brecha olímpica”, que permite a troca via seleção olímpica de sevens. De acordo com a regra olímpica, um atleta pode defender uma nova seleção no sevens caso esteja há 3 anos sem defender outro país no sevens ou no XV. Porém, a troca só pode ser feita em um torneio de caráter olímpico (pré Olímpico ou Jogos Olímpicos). Uma vez que o atleta defende um novo país no sevens, ele pode passar a defender esse novo país no XV também.

Beaumont propõe criar uma regra que facilite a troca, sem que os atletas precisem passar pela “brecha olímpica”. Bastaria estar 4 anos sem jogar por um país para que a troca fosse permitida. Honestamente, concordo com a proposta – e sei que muitos discordam, justamente por não estarmos acostumados com tal ideia, inexistente na cultura do futebol – e do rugby até o momento.

Primeiramente, há muitas pessoas com dupla cidadania. Muitos dos samoanos e tonganeses que defendem Samoa, Tonga, Nova Zelândia ou Austrália têm dupla cidadania, por terem famílias em um país e terem nascido ou residido desde a infância em outro. O mesmo ocorre com muitas pessoas em outras partes do mundo e, sinceramente, parece-me autoritário obrigar uma pessoa com dupla cidadania a escolher um dos países. Uma pessoa com dupla cidadania pode perfeitamente se identificar com os dois países profundamente. Se na vida o indivíduo não é obrigado a escolher um dos países, por que deveria ser no esporte?

Haveria conflito de interesses em defender dois países? Sinceramente, por que haveria? Atleta profissionais já estão acostumados a trocarem de equipes e lidarem com a situação. Na verdade, acreditar no conflito de interesses foi no século XIX e início do XX um argumento usado pelos defensores do amadorismo, que diziam que um atleta não deveria trocar de cidade e defender uma equipe de um lugar onde não havia nascido. O que parece absolutamente contraditório é que hoje já acontece tal dilema. Atleta sul-africanos defendem a Irlanda e não têm problemas em enfrentarem os Springboks. Argentinos defendem a Itália e não têm problemas em encararem os Pumas. Nada mais natural que permitir que eles, se assim desejarem, defendam os dois países em algum momento de suas carreiras. Simplesmente, não há mudança alguma nos dilemas pessoais de cada um.

O conflito de interesses só apareceria caso fosse possível um atleta trocar de seleção a qualquer momento. Havendo um tempo mínimo de 4 anos sem jogar rugby de seleções para que um atleta possa trocar de país, simplesmente qualquer troca de equipe por casuísmo desaparece. Quatro anos é muito tempo na vida esportiva.

É importante ainda lembrar que no rugby as seleções pagam atletas. Para atletas oriundos de países pobres (como Samoa, Tonga) ter a oportunidade de jogar pelos All Blacks, Wallabies ou Inglaterra não é mero capricho de ego. É uma questão financeira e esses atletas pensam no dinheiro que enviam à suas famílias. Terem a oportunidade de jogarem depois por Samoa ou Tonga parece-me justo, sobretudo quando muitos deles efetivamente têm real identificação com dois países.

Entretanto, seleção não pode funcionar como clube. Seleções não são espaço de comércio de atletas. Com isso, outra medida é importante. Na minha opinião, um atleta só deveria por defender uma segunda seleção caso seja cidadão da mesma. Isto é, acredito que não deveria ser permitido um atleta usar a regra da residência para trocar de seleção.

Para mim, a regra de residência precisa existir para proteger imigrantes que não tenham nacionalidade dos países onde cresceram, por exemplo, bem como para permitir que atletas que vivem há muito tempo em um país possam defendê-lo, pois enraizaram-se. Porém, se tal regra não pode ser deturpada e criar um sistema de comércio de atletas. Seleções nacional não são espaço para transações de atletas – o clube já existe como esse espaço. A regra da residência não pode ser banalizada, em outras palavras. Por isso, creio que ela deva ser usada apenas para qualificar um atleta para sua primeira seleção, mas não para sua segunda. Isso inibiria a troca de seleção ser transformada em comércio.

Em resumo, acredito ser correto:

  • Um atleta se qualificar para defender uma primeira seleção por nascimento, ascendência ou residência;
  • E trocar para uma segunda seleção, 4 anos depois de seu último jogo pela seleção anterior, por critério de nascimento ou ascendência;

Tal combinação me parece justa e impede a situação atual autoritária e desproposital de obrigar um indivíduo com dupla cidadania a escolher um país, quando na vida tal escolha não é obrigatória. Não existe conflito de interesses se a troca for bem regulamentada. O esporte tem que evoluir junto com a sociedade e entender que em um mundo globalizado é mais do que aceitável um indivíduo ter dois países.