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ARTIGO OPINATIVO – Amanhã, quinta-feira, terá início a Copa do Mundo de Críquete, um dos maiores eventos esportivos do planeta – e jogada sempre no mesmo ano da Copa do Mundo de Rugby. Quem tiver interesse, os jogos (que duram cerca de 6h cada) serão exibidos todos ao vivo no Watch ESPN.

Trata-se de um esporte que eu pessoalmente gosto e me interesso, mas certamente não é o mais conhecido do brasileiro – a não ser pelo taco, jogo que está na infância de muita gente e que nada mais é do que uma derivação informal do críquete, que chegou ao Brasil por mãos inglesas (óbvio) no fim do século XIX (basta dizer que clubes históricos do rugby brasileiro, como SPAC e Rio Cricket, ou mesmo do futebol, como o Vitória, nasceram primeiro para a prática do críquete).

O críquete é um esporte britânico criado (codificado) no século XVIII, antes de rugby ou futebol. Com o críquete nasceram os esportes modernos, isto é, os esporte com leis escritas, codificados e com instituições reguladores, bem como a profissionalização de atletas, primeiro ocorrida com o esporte de taco e bola. Os primeiros estádios na Inglaterra pensados para esportes foram construídos para o críquete e muitos deles foram usados nos primórdios do rugby e do futebol, como por exemplo o Raeburn Place, em Edimburgo, na Escócia, onde foi disputado o primeiro jogo internacional de rugby, em 1871, entre Escócia e Inglaterra.

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Existem 3 formatos principais de críquete, que são jogados profissionalmente:

  • First-class cricket, também chamado de Test Cricket (para jogos de seleções), que são partidas longas, que tendem a durar até 5 dias seguidos de 6 horas. Trata-se do formato mais tradicional do esporte e os atletas dos dois times vestem uniformes brancos. Não há competições de sede única, com os países fazendo giras para se enfrentarem anualmente. O duelo mais famoso é The Ashes, Austrália x Inglaterra;
  • One-day cricket, o críquete de um dia, jogado em até 6 horas – desenvolvido para a Copa do Mundo, criada em 1975 e jogada de 4 em 4 anos. Os atletas usam uniformes com as cores de seus times;
  • Twenty20 cricket (ou apenas T20), jogado em cerca de 3 horas, criado recentemente para o desenvolvimento de ligas lucrativas de olho nas audiências de TV e internet. As camisas também são coloridas. Há um Mundial de Twenty20, criado em 2007, o chamado de World T20, bienal, mas a competição mais badalada é a bilionária Indian Premier League, o Campeonato Indiano. Fala-se no T20 como futura modalidade olímpica;


Assim como o rugby, o críquete se difundiu pelo Império Britânico. Mas, diferentemente do rugby, ele basicamente ficou concentrado dentro dos domínios da Rainha, sendo pouco difundido fora deles (apenas de ser jogado em quase todos os países, como no Brasil). E também diferentemente do rugby, o críquete realmente se difundiu dentro do Império. Enquanto a bola oval se enraizou na África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, ela não se popularizou no Caribe e no Subcontinente Indiano.

Já o críquete é a paixão nacional de Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka e das pequenas nações caribenhas (Trinidad e Tobago, Jamaica, Guiana, Barbados, Antigua e Barbuda, Santa Lúcia, entre outras), que no críquete mantém a tradição de jogarem juntas, como uma só seleção, as West Indies (Índias Ocidentais, velho nome para o Caribe de colonização inglesa). E recentemente o Afeganistão que, apesar da interminável guerra civil, abraçou o críquete, aprendido pelos afegãos de campos de refugiados no Paquistão e transformado em esporte nacional.

 

Esportes irmãos?

No século XIX, o rugby e o futebol eram considerados pelos britânicos esportes de inverno, jogado nos meses mais frios. O críquete era o esporte do verão, jogado para se aproveitar o sol, tão raro na Grã Bretanha. Muitos atletas no século XIX e início do XX jogavam tanto rugby como críquete nas Ilhas Britânicas, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, onde os dois esportes são muito populares. Nada menos que 6 sul-africanos, 2 australianos, 7 neozelandeses, 7 ingleses, 14 irlandeses e incríveis 31 escoceses jogaram tanto pela seleção de rugby como pela seleção de críquete de seus países, além de 15 atletas que defenderam um país no críquete e outro país no rugby em jogos oficiais.

 

Quem é mais popular?

A resposta é simples: críquete. Não precisa pensar muito para concluir isso. O críquete é o esporte nacional da Índia, que sozinha tem mais de 1,3 bilhão de habitantes. Somando-se a Paquistão (215 milhões), Bangladesh (163 milhões), Afeganistão (30 milhões) e Sri Lanka (22 milhões) e aos milhões de imigrantes desses países espalhados pelo mundo totalizam-se 2 bilhões de pessoas. Basta dizer que no último Mundial o clássico entre Índia e Paquistão bateu a marca do 1 bilhão de espectadores.

Para além disso, na Austrália o rugby é um esporte regional, com metade do país curtindo os rugbys (na verdade, com a maioria curtindo o Rugby League) e a outra metade o futebol australiano, enquanto o críquete é considerado o único esporte realmente de todos os australianos. Contando-se ainda Inglaterra, África do Sul, Nova Zelândia – onde os dois esportes são populares – e o Caribe, não há muito a se discutir.

No entanto, o rugby tem algo que o críquete não tem, que é sua representatividade global – agora auxiliada pelo sevens olímpico também. A força do rugby na França, Itália, Argentina, Japão ou Geórgia garantem um esporte mais representativo, ainda que menor em número bruto de fãs. Mesmo assim, apesar da força na França, onde o rugby rivaliza com o futebol, o rugby ainda tem muito a crescer como esporte profissional em Argentina, Itália ou Japão. Já o crescimento em países como Estados Unidos, Rússia, Espanha e mesmo Brasil vem sendo assistido com interesse mundo afora, mas a diferença da economia dos esportes ainda é grande. A liga indiana paga hoje paga hoje na casa dos 4 milhões de dólares por atletas, enquanto são raros os atletas de rugby que passam do 1 milhão por ano.

 

A organização do críquete: um alerta para o rugby

O críquete oferece ao rugby alguns exemplos a serem evitados se o rugby realmente quer se firmar como um esporte indubitavelmente global. Primeiramente, o tema mais interessante é a dos Mundiais. O grande motivo para a Copa do Mundo de Rugby ser tão grande – e não ficar atrás da Copa do Mundo de Críquete em prestígio – é o fato dela reinar sozinha (por enquanto) no mundo do rugby. Ela é a maior competição. No críquete, a Copa do Mundo, apesar de ser considerada o título mais importante, é uma entre várias competições – a começar pelo fato do críquete ter 3 modalidades que competem por espaço. O World T20 é hoje o grande competidor, pelo crescimento desenfreado do formato mais curto mundo afora – sobretudo entre os fãs mais jovens. Além disso, enquanto indianos e paquistaneses estão mais preocupados com suas rivalidades regionais e com suas poderosas ligas de franquias de T20, ingleses e australianos ainda valorizam muito o The Ashes (Test Cricket).

No rugby, tal competição não existe sobre a Copa do Mundo, mesmo havendo British and Irish Lions, Six Nations, Rugby Championship ou Jogos Olímpicos no calendário ovalado. Porém, a possibilidade de criação da Liga Mundial (Nations Championship) nos próximos anos pode mudar o quadro.

Mas o que mais interessa talvez em se compreender o críquete é como o ICC – International Cricket Council, a federação internacional – é organizado. A entidade oficialmente classifica seus membros em duas categorias: membros plenos e membros associados.

Os membros plenas são uma espécie de nobreza do críquete. São 12 países que praticamente têm seu calendário inteiro jogado entre si. Tratam-se dos únicos países que podem jogar Test Cricket entre si e têm grande vantagem nas eliminatórias para a Copa do Mundo de Críquete e para o World T20. Essa elite mundial joga entre si ainda todo ano os chamados Campeonato Mundiais, que nada mais são do que rankings anuais que premiam o melhor time do mundo em cada uma das 3 categorias do críquete. Isto é, funcionam como ligas mundiais, adicionando valor aos jogos que de outro modo seriam apenas amistosos.

Quem são esses 12 países? Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Afeganistão, Inglaterra, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Zimbábue e West Indies. Ninguém entra nesse grupo a menos que seja convidado – algo que lembra o Six Nations do rugby. Irlanda e Afeganistão foram os últimos a ser admitidos, em 2017, mas antes delas Bangladesh havia sido o último a virar membro pleno, em 2000. E os demais países são os chamados membros associados, onde o críquete é em geral amador.

A grande mudança no críquete aconteceu na verdade em 2014. Naquele ano, Índia, Austrália e Inglaterra se uniram e, por serem as maiores forças econômicas do críquete (sendo chamadas de “Big Three”), modificaram os estatutos da federação internacional e assumiram o controle absoluto do conselho da entidade. Agora, o Comitê Executivo da entidade têm 5 membros, sendo que Inglaterra, Austrália e Índia tem 1 membro assegurado para cada, enquanto os outros 2 são rotativos entre os demais 9 países que são membros plenos. A divisão de verbas agora canaliza mais de 60% para o “Big Three”, enquanto cada um dos outros 9 membros plenos ganham cada um ao redor de 5% – e os membros associados praticamente nada, travando o investimento no desenvolvimento do críquete fora de onde ele já é grande.

Tal realidade é tudo que o rugby realmente precisa evitar – e a briga atual em cima da Liga Mundial e da resistência do Six Nations ao sistema de rebaixamento é precisamente isso. Parte das disputas do rugby se travam dentro do Conselho do World Rugby, que também é controlado em boa medida por 11 nações: Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Argentina, França, Inglaterra, Gales, Escócia, Irlanda e Itália, que têm 3 votos cada, ao passo que o Japão é a 11ª força com 2 votos. Canadá, EUA, Romênia, Geórgia, Fiji e Samoa, pelo menos, têm 1 voto direto cada, ao passo que as federações continentais têm 2 votos cada. Melhor que o cenário do críquete, mas indubitavelmente polarizado.

 

O Mundial de 2019

A Copa do Mundo de Críquete de 2019 será disputada na Inglaterra entre os dias 30 de maio e 14 de julho e terá formato polêmico. Depois de muitas mudanças de formato de disputas, com Mundiais que chegaram a ter 14 e até 16 participantes, o críquete deu um passo atrás e reduziu o Mundial para 10 times, aplicando um sistema de todos contra todos, garantindo que todos os clássicos fossem jogados no mesmo torneio. Os 4 melhores irão às semifinais.

Com isso, o críquete abriu mão de ter nações emergentes e sequer contará com todos os seus super membros. Neste ano, participarão do Mundial, além da Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, West Indies, Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka e o debutante Afeganistão (que deixou Zimbábue e Irlanda de fora).

A Austrália tem 5 títulos mundiais e é a atual campeã (tendo vencido a Nova Zelândia na final de 2015, o contrário do que ocorreu no rugby naquele ano), enquanto a Índia tem 2, as West Indies 2, o Paquistão 1 e o Sri Lanka 1. A Inglaterra, criadora, nunca venceu o torneio (surpresa!?).

 

Melhores momentos da final de 2015

Este artigo é dedicado a Luís Kolle, maior fã de críquete que conheço.

4 COMENTÁRIOS

    • Existe sim, o Mundial Feminino também será na Inglaterra, começando no dia 24 de junho. Não é lenda, há pausa no First-Class Cricket, para evitar que um time arremesse/rebata por 6 horas ininterruptas. Na Copa do Mundo, a pausa já ocorre entre os innings.

  1. Texto magnífico. Mas vejo o rugby com mais perspectivas de futuro que o Cricket. Eles tem poucas grandes ligas e o esporte é muito polarizado entre as seleções top 12, diferente do rugby, que é mais globalizado. Lindo texto. Muito bom ver gente falando do cricket.

  2. Texto incrível, Victor. O críquete também tem o infeliz sistema de tiers, mas nesses últimos anos eles fizeram um pouco para tornar o esporte mais inclusivo para as seleções do segundo escalão. Além do full status para Irlanda e Afeganistão, a ICC mudou o sistema de qualifiers para a Copa do Mundo, deu status de One-Day International para Holanda e mais 7 seleções, que vão disputar a “Série Mundial” deles, e permitiu o status T20I para todas as seleções. Ainda assim, falta muito para a ICC ser tão inclusiva quanto o rugby, mas os primeiros passos felizmente foram dados.