Foto: Bruno Ruas @ruasmidia

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ARTIGO OPINATIVO – A África do Sul mudou, mas não por completo. O país sofre com o racismo, assim como o mundo todo. Não sejamos ingênuos sobre isso. No Brasil, o assunto é presente e as últimas semanas não nos deixam esquecer disso. No entanto, do mesmo modo que qualquer esporte pode servir de palanque para racistas destilarem suas ideinhas, o esporte também pode servir como um forte exemplo positivo. É o caso dos Springboks de 2019.

Nunca na história um negro havia capitaneado os Springboks. Até o início dos anos 80, os Springboks eram a seleção apenas dos brancos do país – por determinação legal. Coloureds (mestiços), asiáticos e negros não podiam defender essas cores e tinham suas próprias seleções (Proteas, para coloureds e asiáticos, e Leopards, para os negros), que não tinham permissão para representar a África do Sul. Com o fim do regime racista do apartheid nos anos 90, com a eleição de Nelson Mandela à presidência do país, os Springboks passaram a ser os representantes de todos os sul-africanos, mas a composição da seleção não refletia isso, com apenas Chester Williams representando 85% do país. O time campeão de 2007 tinha entre os titular da grande final apenas Bryan Habana e JP Pietersen… e tanto Williams, como Habana e Pietersen são coloureds. Os negros do país, no fundo, não estavam representados nas grandes finais.

Em 2019, a foto é outro. Siya Kolisi, Makazole Mapimpi, Lukhanyo Am, Tendai Mtawarira, Bongi Mbonambi… todos protagonistas e negros. Além de Cheslin Kolbe e Herschel Jantjies, coloureds. Os tries da final foram de Mapimpi e Kolbe.

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As histórias de Siya Kolisi, Lukhanyo Am e Makazole Mapimpi são as de milhões de sul-africanos negros. Pobres, com mínimas oportunidades, mas que conseguiram pelo esporte ascenderem. Eles servirão de inspiração para uma larga fatia da população sul-africana, que, mesmo após dois títulos mundiais dos Boks, preferiam torcer pelos All Blacks (por entenderem os Springboks ainda como o símbolo do racismo) ou simplesmente não interessavam por rugby – preferindo o futebol. Kolisi, Am e Mapimpi, aliás, vieram de regiões do país onde historicamente o rugby era jogado, mesmo em tempos de apartheid, pelo negros largamente. Kolisi mal tinha dinheiro para comprar roupas para entrar em campo quando jovem, mas a existência de uma comunidade que há muito tempo abraçara o rugby foi importante para criar nele a paixão pelo esporte. Em outras partes do país, jovens negros ainda estão mais distantes da bola oval – e de muitas outras coisas.

Muitas ações afirmativas foram tomadas recentemente para ser possível dar mais acesso aos jogadores negros ao alto rendimento. Começar a jogar rugby em um campo de terra sem equipamento não é a mesma coisa que fazer o mesmo no futebol, por exemplo. O rugby é um jogo muito físico, muito mais difícil de se progredir sem a devida estrutura. A criação de plataformas se tornou crucial e as exigências de maior diversidade nas equipes se tornaram parte dessas medidas, pensando no curto prazo. A mudança começou a ocorrer, mas ainda não por completo.

Quando se falam em cotas no rugby sul-africano, há muita desinformação. O governo sul-africano exerce pressão para que todos os esporte tenham maior presença de atletas não-brancos e no rugby a meta para o governo era de chegar em 2019 a 50% do time. A meta não foi alcançada, com o time tendo 11 atletas entre os 31 (12, contando-se Nyakane, cortado por lesão no meio do Mundial). Ainda assim, o efeito foi retumbante. O técnico Rassie Erasmus tomou uma atitude brilhante ao eleger Kolisi como seu capitão. E na escalação, apesar das corriqueiras reclamações de muita gente, a composição de seu time titular contava com a presença regular de 6 atletas negros. Não é 50%, mas é excelente, por toda a história. Trata-se de um elenco que inspira muito mais gente no país.

O que 2019 terá feito pela África do Sul somente saberemos com o tempo. Ninguém deixa de ser racista da noite pro dia. No entanto, momentos como o de 2019 ajudam a desconstruir ideias preconceituosas e o efeito se verificará com o tempo. O mundo do rugby vivenciou um momento único. Tão grande quanto 1995. Mandela e Chester (RIP) estariam muito felizes.

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