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hulk habana

Dentre os maiores indícios de nacionalização de um esporte é a incorporação, alteração e tradução de sua terminologia. O rugby (ou rúgbi, como está nos dicionários de português no Brasil, ainda que não seja tão difundido dentro da comunidade de praticantes) é um esporte de origem inglesa e, portanto, seus termos originalmente são em língua inglesa, naturalmente. A rápida popularização do rugby por países onde o inglês não é a língua oficial foi acompanhada ao longo do século XX pela tradução dos termos do esporte, inclusive das posições dos atletas, dos nomes das pontuações, entre outros.

O caso mais claro é o da França, que traduziu praticamente todos os termos (try, que virou essai, scrum, que se tornou mêlée, full-back, transformado em arrière, ou hooker, chamado de talonneur). O próprio francês se tornou a base para algumas traduções em outras línguas, sobretudo nas línguas latinas. Em Portugal, o try pode ser “ensaio”, o hooker pode ser chamado de “talonador”. O próprio termo “abertura” talvez se relacione com o francês demi d’ouverture, mas a influência para mim, que não sou linguista, não está clara. No espanhol, muitos termos também foram traduzidos e ligados ao futebol, como o uso de zaguero para full-back. No italiano, a mera associação lógica dos termos se faz forte nas traduções, como meta sendo usada para try. Os exemplos de traduções são muitos e perpassam outras línguas de países mais fortes que o Brasil no rugby, como o romeno, o georgiano, o japonês e o russo. Mesmo no alemão a maior parte dos termos já foram traduzidos e usados dessa forma.

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No Brasil, seguindo a tendência de não usar as traduções realizadas em Portugal (teima muitas vezes questionável), os termos do rugby foram pouco traduzidos ainda, com muitos usos em inglês permacendo mesmo quando já há sinônimos (a começar por este redator que, por hábito e por proximidade ao leitor, usa rugby ao invés de rúgbi, o que é criticável). O caso mais típico, além de try e rugby, é o do line-out, que poderia ser facilmente trocado por lateral. Normalmente abreviado para line, esse termo não causa tantos problemas para quem não conhece o inglês. Mas, outros certamente causam.

Outro dia me deparei com a grafia “hulk”. Confuso com o que lia, demorei alguns bons segundos até ligar os neurônios e descobrir que a palavra designava o camisa 2 de uma equipe, o hooker! Nesse caso, fica claro que o exercício de tradução não é mera “frescura”, ou nacionalismo vazio, mas um instrumento de inclusão, de popularização, num país onde a educação é deficiente. Quando a linguagem oral e escrita se coloca como uma barreira, como uma marca de diferenciação clara entre as pessoas, impondo relações menos horizontais, mais fracas se tornam as relações interpessoais que, no rugby, são essenciais, seja para a a difusão do jogo entre pessoas ainda se contato com ele, seja nas relações entre educadores, técnicos, professores e alunos, jogadores.

Peguei, claro, um exemplo extremado, mas há outros erros de grafia que já se tornaram vícios, mesmo entre praticantes que dominem minimamente o inglês e que já estejam inseridos no rugby há muito tempo. É o caso do termo forwards, que teima em ser escrito como fowards, sem o primeiro “R”, por muita gente. Não precisaria de muito esforço para concluir que forwards se refere aos jogadores avançados. Se o termo “linha” para os backs não é uma tradução direta do inglês, mas é de fácil compreensão (ainda que nem sempre usado), o uso de “avançados” teria uma fácil associação com a própria tradução.

Já no campo do inexplicável se encontra o termo “half-scrum”. Até hoje não encontrei uma explicação para a inversão do termo scrum-half que se operou no Brasil. “Half-scrum” simplesmente não existe oficialmente em inglês – ainda que talvez possa ser encontrado informalmente -, mas é usado sistematicamente no Brasil. Ao invés de traduzirmos um termo tão simples, invertemos a forma original, o que reforça ainda mais a “salada” dos termos. Em Portugal, o termo half é traduzido por “médio”, sendo o fly-half o médio-de-abertura, ou abertura (usado largamente no Brasil), e scrum-half o “médio-de-formação”, que não vejo por que não poderia ser chamado simplesmente de “médio”, ou mesmo “meia”, o que seria lógico para a função e facilmente associável à abreviação half (usada no Brasil normalmente apenas para o scrum-half).

O uso das línguas estrangeiras é ainda igualmente forte nos nomes de times pelo país. Muitas vezes, quando lemos as listas de jogos de rugby no Brasil nos questionamos se estamos vendo um campeonato brasileiro ou inglês. Acho mais do que natural e respeito querer homenagear times dos quais somos fãs batizando nossos próprios times com seus nomes. Ou mesmo a sedução que é usar um nome forte de uma língua estrangeira para sua equipe, buscando destaque e diferenciação. Mas, muitas vezes, os times se esquecem que seus nomes não são de fácil leitura ou pronúncia para seu próprio público-alvo (aliás, há times que têm nomes em inglês escritos com erros graves de ortografia!), isto é, para a comunidade onde querem se divulgar. Em geral, nada é melhor do que o simples nome de sua cidade, bairro, estado, região, escola ou universidade de origem, ou ainda o nome de algum símbolo regional forte, como uma figura emblemática, um animal ou planta típicos, etc. O mais importante do nome é comunicar, esteitar laços, criar vínculos, dialogar com as pessoas que queremos atrair para o esporte ou ainda com o poder público e com a iniciativa privada que possa dar seu apoio. Nada impede que a equipe tenha um apelido oficial em acréscimo.

A nacionalização de termos não é algo facilmente operável e jamais deve ser feita à força, na “canetada”. A língua é viva e é o uso por parte dos falantes que legitima as mudanças nos termos. Esse processo se desencadeará quando os amigos rugbiers, os professores, os treinadores, os colegas de time, passarem a testar a linguagem internamente e, depois, com outros times, outros amigos, e assim por diante. Deve partir de dentro das pessoas que praticam o rugby (ou rúgbi!) o uso de termos novos, de traduções, de reapropriações, e, pouco a pouco, tais usos irão se difundir, se incorporar ao léxico da imprensa ou ao léxico oficial do esporte. Afinal, a imprensa ou os órgãos oficiais têm que falar com as pessoas, e não usar termos que elas não compreendem. A mudança pode ocorrer mais rápido do que se espera, basta este ser um exercício que seja abraçado por todos, que ganhe relevância nas discussões.

O rugby já não é mais propriedade britânica, como não é o futebol. Parece às vezes que temos vergonha de usar a nossa língua, parecendo mais bonito usar o inglês, língua de “gente chic”, “rica”, “mais importante”, ainda que inconscientemente. Oras, o dia que o idioma de Luís de Camões, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Carlos Drummond, Mário de Andrade, José Saramago, Mia Couto for “inferior” a qualquer lingua do mundo eu me calo para sempre. O esforço vale e muito.