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ARTIGO OPINATIVO – A questão de um compromisso por um calendário mundial é certamente o maior entrave ao crescimento global hoje do rugby. A pandemia abriu uma janela de oportunidade para que o esporte, que pode repensar seu calendário mundial, buscando um acordo entre ligas e federações, Hemisfério Norte e Sul, atletas e clubes. A data para a conclusão das negociações é dia 30 deste mês e o mundo do rugby vem chamando o momento de a decisão mais importante do século XXI no nosso esporte. Para muitos, tão grande quanto a liberação do profissionalismo em 1995.
Não sei se a decisão será tão grande assim, porque sempre pode haver uma renegociação – ao contrário do que foi 1995, quando foi tomada uma decisão “sem volta”. Porém, é fato que o momento da paralisação do esporte abriu a chance de se renegociar muita coisa e se reestruturar o calendário.
Mas, isso é mesmo tão importante assim? Afeta o Brasil? Sim, é importante e nos afeta. O futuro do calendário de seleções impactará em quais meses os Tupis estarão ativos, o que significa também que afetará o futuro da nova liga profissional da América do Sul (SLAR) e, consequentemente, terá impacto na organização de nosso calendário de rugby de clubes amadores.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer qual é o calendário atual (o que estava planejado antes do coronavírus):
- Europa:
- Temporada de clubes: Setembro a Junho;
- Six Nations: Fevereiro e Março;
- Amistosos internacionais (Norte vs Sul): Novembro e Julho;
- Férias/Pré-Temporada: Agosto
- Hemisfério Sul:
- Temporada do Super Rugby: Fevereiro a Junho;
- The Rugby Championship: Agosto e Setembro (com Bledisloe Cup em outubro);
- Amistosos internacionais (Norte vs Sul): Julho e Novembro;
- Férias/Pré-Temporada: Dezembro/Janeiro
Portanto, quais são os maiores problemas? As principais questões de momento são as seguintes:
- Liberação de atletas pelos clubes europeus. Hoje, o rugby europeu de clubes tem um calendário de 10 meses seguidos e os jogos das seleções nacionais conflitam com os clubes. Porém, os clubes pagam os salários;
- Férias dos atletas. O calendário europeu de 2020-21 (caso o coronavírus não tivesse paralisado as competições) teria:
- Ligas europeias de setembro ao final de junho;
- Amistosos entre seleções em julho;
- Recomeço das ligas em setembro;
- Ou seja, atleta que jogassem em julho pelas seleções teriam agosto de férias e não teriam pré temporada;
- Desalinhamento entre The Rugby Championship e calendário europeu:
- O Rugby Championship (a competição entre All Blacks, Wallabies, Springboks e Pumas) ocorre em agosto e setembro;
- O período de férias dos atletas que atuam nos clubes europeus é agosto e setembro já é mês de ligas na Europa;
- Com isso, sul-africanos, argentinos ou australianos que atuam na Europa precisam negociar férias e liberação com seus clubes, estando arriscados de não terem férias na prática;
- Baixo valor comercial dos amistosos:
- Há pressão para que se transforme os amistosos em alguma competição, como a liga mundial;
- Com isso, fala-se na transferência dos jogos de julho para outubro, criando junto com novembro dois meses seguidos de uma liga de seleções;
- Tal movimento não poderia comprometer a realização a cada 4 anos dos tours dos British and Irish Lions, ainda importantes economicamente;
- Prejuízo às ilhas do Pacífico;
- Fiji, Samoa e Tonga contam com atletas tanto na Europa como no Super Rugby. Sem alinhamento entre os dois calendário, tais países raramente conseguem reunir seus melhores elencos nas mesmas datas;
- Tal situação também afeta as Américas, pois EUA, Canadá e Uruguai também contam com atletas na Europa, ao passo que o calendário das Américas segue o Hemisfério Sul;
- Situação do Japão;
- O mercado japonês floresceu com a Copa do Mundo de 2019, mas sua seleção ainda não joga nenhuma competição anual de peso (Six Nations ou Championship);
- Conservadorismo do rugby arrisca a perda de um mercado crucial para o futuro;
- Necessidade de mecanismos mais dinâmicos de ascensão para novos países;
- Mais e mais países querem poder enfrentar os grandes do mundo e criar um sistema mais meritocrático de ascensão no rugby. A Geórgia é o caso mais emblemático, mas já há mais países vão reivindicando espaço no calendário. Os Estados Unidos podem ser a próxima “bola da vez”;
- O sistema atual é fechado demais e uma expansão no número de jogos por seleção impacta no calendário dos clubes;
- Inverno do Leste Europeu;
- Por fim, menos lembrado, o calendário atual pune o Leste Europeu no “Six Nations B”, colocando Rússia e Romênia em situação desfavorável por jogarem em pleno inverno (em fevereiro, sob condições péssimas para público e atletas);
Quais seriam as alternativas?
Uma das soluções levantadas sugere o seguinte:
- Six Nations e The Rugby Championship em março e abril;
- Amistosos (que poderia virar uma Liga Mundial) em outubro e novembro;
- A cada 4 anos a Copa do Mundo entraria em tal período;
- A temporada europeia de clubes seguiria inalterada e o Super Rugby iria de abril a setembro;
A princípio, esta seria a melhor das opções, pois unificaria o calendário mundial. Entretanto, tal proposta gera descontentamento de parte do Hemisfério Sul, que se opõe à ideia das seleções abrirem a temporada no Hemisfério Sul, pois o nível do jogo talvez não fosse o melhor.
Outra opção menos drástica seria:
- Manter as datas de Six Nations e Rugby Championship, mas mover os amistosos de julho para outubro;
- Com isso, os atletas do Championship que atuam em clubes europeus teriam férias em julho e voltariam à ativa já em agosto com o Championship;
- Assim, haveria pressão sobre os países do Hemisfério Sul que têm atletas na Europa. Tal situação é importante no momento atual, pois Argentina e África do Sul já aceitam o fato de não conseguirem economicamente competir com os clubes europeus;
- Por outro lado, a Nova Zelândia, que segue mantendo seus principais nomes no Super Rugby e não depende de jogadores que atuam na Europa;
Está claro aqui um conflito de interesses dentro do Hemisfério Sul, com sul-africanos e argentinos buscando uma maior conciliação com o calendário europeu. Para os sul-africanos tal situação é crucial, pois o país vem olhando cada vez mais para a Europa como alternativa.
Na imagem acima vemos as possibilidades comparadas. Em vermelho estão as datas que colocam em conflito interesses de clubes europeus com seleções do Hemisfério Sul. Os asteriscos apontam meses de transição do Hemisfério Sul (numa linguagem do futebol, intertemporadas).
Na minha visão, a mudança mais adequada é a que une Six Nations e Championship (e ARC), pois creio que uma série de amistosos de pré-temporada em fevereiro para tais seleções contra times de Super Rugby e seleções menores garantiria um Rugby Championship bom o bastante em março e abril. Tal situação já é enfrentada pelos europeus em anos de Copa do Mundo, pois o Mundial abre a temporada europeia em tais anos. Este cenário harmoniza os conflitos e permite a melhora nas seleções do Tier 2 (como Fiji, Samoa, Tonga, EUA), abrindo caminho para uma expansão mundial mais justa e sustentável. O pequeno sacrifício do Championship seria recompensado com tal cenário.
Há ainda outras opções na mesa, com os clubes europeus sugerindo a criação de um Mundial de Clubes anual, que poderia ser disputado em abril, junho ou mesmo setembro. Esta proposta seria ainda mais disruptiva em um calendário já abarrotado. Porém, a proposta tem a intenção de ampliar receitas dos clubes, do mesmo modo que as seleções pensam numa Liga Mundial que amplie suas receitas.
Por sua vez, as indefinições sobre o futuro do Super Rugby e a criação ou não de uma Liga Mundial de seleções (em versão reduzida) seguem tornando o quadro ainda mais incerta. Em todos esses casos, está claro, o Americas Rugby Championship e a SLAR (a liga profissional sul-americana) terão seus calendários afetados.
Em meio a tudo isso, os interesses dos atletas profissionais – e seu bem-estar – estão cada vez mais sob pressão. Certamente, a atual crise econômica gerada pela pandemia vai agravar os cofres tanto de clubes como de federações e isso levará a propostas ainda ousadas – e com menos consideração pelos atletas.
No fundo, o rugby enfrenta um dilema quase insolúvel, que consiste em:
- Aumentar receitas dos clubes (ou reduzir perdas);
- Aumentar receitas das seleções (ou reduzir perdas);
- Conciliando interesses do Hemisfério Norte (Six Nations) com Hemisfério Sul (Championship);
- Conciliando interesses do Tier 1 (as seleções de Six Nations e Championship) com o Tier 2 (as demais seleções);
- Introduzir o Japão numa competição anual, sem congestionar calendário ainda mais;
- Manutenção dos British and Irish Lions a cada 4 anos;
- Criar competições com mais valor para clubes (Mundial de Clubes);
- Criar competições com mais valor para seleções, que substituam amistosos (“Liga Mundial”);
- Reduzir número de jogos por atleta e preservar férias;
- Liberar atletas por mais tempo para as seleções;
São, portanto, interesses conflitantes, que serão insolúveis se algum lado não ceder. O que é fato é que o lado dos atletas não pode “perder”, uma vez que não é possível colocar mais pressão física e mental sobre os jogadores. Quem irá ceder? O World Rugby (a federação internacional, que reelegeu Bill Beaumont e rechaçou Agustín Pichot) terá que encontrar a solução, convencer um lado a ceder e compensá-lo.
Em meio a tal impasse, o rugby vai perdendo oportunidades de se expandir para novos mercados e aumentar o valor comercial de seus torneios. Seleções e clubes precisam de eventos que valham mais e isto só é possível contando com seus principais craques e tendo tempo para treinarem e descansarem. As seleções dependem dos clubes, que pagam os salários dos atletas (ou parte deles). Os clubes precisam das seleções, que expandem o mercado do rugby como um todo.
Infelizmente, o esporte que mais prega trabalho coletivo e solidariedade está preso num impasse de desunião, individualismo e imediatismo. Num mundo do esportes – e do entretenimento – tão competitivo hoje, o rugby não pode perder a chance de conciliar suas velhas disputas.