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O rugby mundial está chegando a um impasse insolúvel, que poderá virar uma grande crise em breve. Clubes e federações seguem em rota de colisão no rugby profissional por conta do calendário de jogos, cada vez mais conflitante entre competições de seleções e de clubes, bem como entre a quantidade de jogos existente e a integridade física dos atletas.

Em setembro, o presidente do galático Toulon, Mourad Boudjelal, ameaçou cortar o salário dos atletas de seu clube os dias perdidos por serviços às seleções, alegando que as federações deveriam arcar com tais custos, ressarcindo o clube. Ainda neste ano, a Federação Francesa de Rugby revelou que poupará vários atletas para a gira para a Argentina em 2016, reduzindo o número de jogos que cada atleta faz pela seleção e aumentando o plantel de selecionáveis.

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Mais drástica medida vem dos Pumas que, desde 2011, atuam com uma seleção em junho (no fundo, uma segunda força, mesclando atletas titulares e reservas) e outra seleção (com força máxima) no Rugby Championship, uma vez que a base de sua seleção está na Europa e, caso desfrutasse do mesmo período de férias dos europeus (julho) entraria no Rugby Championship muito abaixo do ritmo de sul-africanos, australianos e neozelandeses que jogam o Super Rugby (que têm férias em dezembro).

Assim, os Pumas que atuam na Europa têm férias em junho e treinam de forma intensiva em julho para o Rugby Championship, que começa em agosto. A partir de 2016, para não precisar ter tal divisão no elenco, os Pumas deverão priorizar quase por completo os atletas que atuarem no Super Rugby – que passará a ter uma equipe argentina – e poderão abrir mão de atletas importantes que decidirem permanecer no rugby europeu. Hoje, australianos e neozelandês mantém a decisão de não convocarem atletas que atuem fora de seus países, o que pode se tornar insustentável a médio prazo com o aumento do poder econômico dos clubes ingleses e franceses.

Adicionalmente, o calendário mundial apresenta outro grave problema: a realização de partidas entre seleções menores – como Uruguai, Chile, Paraguai, Brasil – no período de atividade dos clubes profissionais europeus. Uruguai e Chile constantemente são desfalcados de seus jogadores que atuam profissionalmente na Europa, e em breve isso poderá ser um problema para o Brasil também, quando brasileiros estiverem nas ligas profissionais do exterior.

O problema que todos esses casos expõem é um só: a diferença gritante entre os calendários do rugby do Hemisfério Sul (mais pobre e baseado no sistema de escalões, ou tiers) e da Europa (mais rico, mas saturado pelas longas competições de clubes), e entre os países profissionais e os amadores.

 

As diferenças dos sistemas de competições

Quando, em 1995, o rugby abandonou a velha proibição ao profissionalismo e passou a permitir a remuneração de atletas, as federações (nacionais, estaduais, provinciais), clubes, mídia e patrocinadores viveram meses de negociações para encontrarem os modelos mais interessantes para ligas profissionais, em acordo com as tradições de seus países.

África do Sul e Nova Zelândia apostaram no modelo vigente de profissionalização não de seus clubes, mas de suas seleções provinciais, que disputavam já os genuínos campeonatos nacionais (a Currie Cup sul-africana e a NPC, atual ITM Cup, neozelandesa). No entanto, com mercados nacionais insuficientes para competir com o Hemisfério Norte, uma competição internacional foi criada, o Super Rugby, com a participação da Austrália, onde sequer havia um campeonato nacional entre as seleções estaduais. Na realidade, o conceito do Super Rugby é anterior ao profissionalismo, e tem seu embrião no South Pacific Championship do fim dos anos 80. No Super Rugby, o sistema de franquias foi adotado, com as federações provinciais se unindo ao redor de franquias regionais, tendo participação direta nos chamados “super times”.

Para acomodar as competições nacionais, o Super Rugby e os jogos de seleções, o sistema de tiers foi implementado. Nele, a grosso modo, um atleta que seja figura constante na seleção nacional, joga basicamente de fevereiro a junho o Super Rugby, em junho com a seleção, em julho e agosto novamente o Super Rugby, na fase final, e de agosto a novembro atua com a seleção no Rugby Championship e nos amistosos. Já um atleta que atua no Super Rugby, mas não tem lugar constante na seleção, joga de fevereiro a agosto o Super Rugby e de agosto a outubro o campeonato nacional. Assim, os jogos de seleção seriam rugby Tier 1, os jogos do Super Rugby seriam Tier 2 e os jogos do campeonato nacional Tier 3.

A fim de manter controle sobre os jogadores de suas seleções nacionais, Nova Zelândia, Austrália e África do Sul apostaram no sistema de contratos centralizados, nos quais as federações locais têm contratos e pagam parte dos salários de vários dos jogadores. Como as franquias do Super Rugby e as equipe provinciais da Currie Cup e da ITM Cup são diretamente ligadas às federações provinciais, ligadas, por sua vez, às federações nacionais, sul-africanos, neozelandeses e australianos garantem grande domínio e ingerência sobre seu rugby doméstico.

Na Europa, o sistema é outro. Na França, na Inglaterra e, inicialmente, em Gales e na Itália, foram os clubes, completamente independentes das federações nacionais, que se profissionalizaram, ao passo que Irlanda e Escócia seguiram o modelo do Hemisfério Sul. Galeses e italianos acabaram seguindo posteriormente os passos de irlandeses e escoceses, fazendo do PRO12 uma liga distinta, de franquias, e não de clubes, havendo contratos entre federações e atletas, além de certo nível de controle da federações sobre as equipes.

As ligas europeias, no entanto, seguem o mesmo modelo que o futebol, sendo disputadas ao longo do ano todo, com uma liga nacional e uma copa europeia correndo concomitantemente, e totalizando um número de jogos muito maior que o do Super Rugby. Enquanto cada franquia do Super Rugby joga de 16 a 19 jogos por ano e cada equipe de Currie Cup sul-africana, ITM Cup neozelandesa e, agora, NRC australiana joga de 10 a 12 jogos, cada equipe da Premiership inglesa, Top 14 francês e PRO12 ítalo-celta disputa de 28 a 39 partidas, incluindo já os jogos da Champions Cup e Challenge Cup.

Se de um lado o Super Rugby nunca é disputado ao mesmo tempo que os jogos das seleções do Hemisfério Sul, os clubes do Hemisfério Norte têm parte de seus calendários conflitando com os calendários de suas seleções, o que os obriga a jogarem desfalcados de alguns importante atletas durante algumas partidas do ano.

Para agravar a situação, o calendário mais longo dos clubes europeus lhes assegura mais recursos financeiros, com contratos de TV muito melhores que os do Hemisfério Sul – apesar de a força das economias francesa e inglesa ser mais determinante para o sucesso financeiro de seus times. Mais poderosos e sem interferência central, os clubes do Top 14 e da Premiership ganham a cada dia mais força política e de barganha no cenário internacional, e seus interesses de manterem seus atleta durante todas as rodadas de seus concorridos e acirrados campeonatos nacionais vem, assim, aumentando. Não por acaso, o rugby europeu vem drenando cada vez mais atletas do Hemisfério Sul e elevando as somas de salários e transferências de forma a parecer mesmo trilhar o caminho do futebol, em contraste com o Super Rugby que, mesmo à beira de uma expansão global sem precedentes no esporte mundial (unindo em uma mesma liga um time argentino e um time japonês, separados por dezenas de horas de vôo), não apresenta vitalidade financeira e têm muitas franquias deficitárias, gastando somas vultosas em viagens e não conseguindo competir em salários com os europeus.

 

Modelo atual e modelos possíveis

Diante do impasse imposto pela força alcançada pelos clubes ingleses e franceses em conflito com os interesses das seleções nacionais, vem se tornando incontornável a necessidade do IRB interferir na montagem dos calendários de competições em todos os níveis – clubes/franquias profissionais e seleções – a fim de pacificar a relação entre ligas e federações.

Se o problema dos jogos das seleções amadoras é de fácil resolução – basta serem realizados no período que as grandes seleções do mundo já se enfrentam – o conflito entre Sul e Norte não é nada simples. Com isso, quais são as alternativas de unificação dos calendários dos dois hemisférios?

 

Alternativa 1

– Amistosos de julho passarem para agosto.

Tal medida é paliativa, garantindo apenas que o Super Rugby não tenha sua temporada cortada ao meio. Favoreceria o Hemisfério Sul, mas não resolveria a questão dos atletas do Sul que atuam na Europa, e desagradaria os europeus, que teriam chances reduzidas nos amistosos, pois estariam em início de temporada. Esta alternativa apenas organiza um pouco o calendário no meio do ano e retarda o início dos campeonatos nacionais europeus, garantidos uma ou outra semana a mais sem conflito.

 

Alternativa 2

– The Rugby Championship e Six Nations serem disputados ao mesmo tempo

Moderada, faria o Rugby Championship se iniciar em fevereiro e encerrar em março, com o Super Rugby começando apenas em abril e podendo ir até outubro. Contudo, as seleções poderiam jogar o Rugby Championship abaixo de seu máximo, por estarem em início de temporada. Esse modelo causaria um sério problema político com as federações provinciais menores de África do Sul e Nova Zelândia, já que os campeonatos nacionais teriam que iniciar a temporada, mudando sua forma de operar. Esse modelo também poderia levar os times do Super Rugby a perderem atletas para o rugby europeu no meio da competição.

 

Alternativa 3

– Reduzir as ligas europeias e criar/ampliar copas nacionais

As duas propostas anteriores não mexem no funcionamento dos clubes europeus, que seguiriam perdendo atletas para as seleções nacionais durante algumas partidas em novembro e durante o Six Nations, como ocorre hoje. Isto é, a tensão principal não seria resolvido. Somente o modelo de competições de tiers diferentes do Hemisfério Sul resolve esse problema.

Dessa maneira, uma solução extremamente radical seria negociar com os clubes europeus a divisão dos campeonatos nacionais em dois, deixando de ser disputados no tradicional sistema de pontos corridos, em turno e returno, seguido de mata-mata. Com menos rodadas, os campeonatos nacionais seriam disputados somente quando não houvesse jogos de seleções. No período de jogos das seleções, copas nacionais poderiam ser realizadas, garantindo um troféu a mais em disputa. Tal modelo já é usado na Inglaterra e em Gales parcialmente com a Copa Anglo-Galesa (LV= Cup), mas com a Premiership e o PRO12 sendo atualmente em turno e returno, fatalmente algumas rodadas coincidem com jogos das seleções, e a LV= Cup tem pouco espaço no calendário. Para que uma copa nacional ocupasse espaço suficiente para ser realizada sempre durante os jogos de seleções – não privando os clubes de suas receitas – o campeonato nacional necessita ter reduzido seu número de rodadas, caso contrário a matemática não fecha. E a redução das rodadas só é possível ou com a redução no número de participantes ou com o abandono do “todos contra todos, em turno e returno”.

O maior problema com relação a tal mudança no sistema está nos contratos de TV, já que os clubes só poderiam reduzir a liga nacional e ampliar (ou criar) uma copa nacional caso as receitas não caíssem. Mas, como negociar a altos valores uma copa nacional sem os grandes ídolos? Impasse.

 

Alternativa 4

– Liga Europeia no lugar das ligas nacionais

Esta alternativa é quase impossível, mas vale brincar de levantá-la. Uma solução seria o rugby europeu adotar o mesmo sistema do Hemisfério Sul, com uma liga europeia longa, de 20 rodadas, como é o Super Rugby, sem interrupções e sem perda de atletas para as seleções, seguida, antecedida ou intercalada por ligas nacionais menores, sem os atletas de seleção. A diferença com relação ao Super Rugby seria o fato dos participantes da liga continental serem os mesmos das ligas nacionais.

Tal alternativa iria requerer, na realidade, a fusão das entidades que organizam PRO12, Premiership e Top 14, o que é, na prática, inviável, por exigir uma arquitetura política complexa demais. Muitos clubes também se oporiam, por fatalmente serem excluídos da elite, que não comportaria todos os 38 times que hoje têm essas três ligas. Para piorar, o Six Nations onde se encontra no meio da temporada europeia de clubes, e muito provavelmente poderia ter que ser relocado no calendário. Improvável pelo peso da tradição de ser disputado no inverno, no início do ano.

 

– Alternativa 5

Eliminação de um dos períodos de amistosos

Essa alternativa na verdade não é concorrente das demais, e poderia ser implementada em conjunto com as demais. Mas, também poderia ser implementada no modelo atual, sem qualquer outra alteração na estrutura vigente.

O princípio é simples: ao invés dos campeonatos de haver duas pausas para amistosos, além das pausas para Six Nations e The Rugby Championship, haveria somente um período de amistosos, um pouco mais longo (entre 3 e 5 finais de semana), mas extremamente rígido (com o IRB assegurando com sanções, ao contrário do que hoje ocorre, que nenhuma seleção atue fora desse período). Em um ano, o Hemisfério Sul visitaria o Hemisfério Norte, e no outro ano o Hemisfério Sul receberia o Hemisfério Norte. Hoje, ambos se visitam ao longo do ano.

Um empecilho para essa fusão dos amistosos seria o desequilíbrio entre os Hemisfério, pois no ano de Copa do Mundo não haveria esse período de amistosos. Ou seja, seriam três anos para amistosos, e um deles terá o British and Irish Lions, que sempre ocorre no Sul. Além disso, os contratos de TV para os jogos dos países do Sul na Europa são mais altos, e a ausência de All Blacks, Springboks e Wallabies na Europa em alguns anos poderia causa insatisfação dos patrocinadores e perdas para as federações.