Foto: Mark Kolbe - World Rugby/Getty Images

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ARTIGO OPINATIVO – Chegamos, finalmente, à aquela altura do ano em que australianos e neozelandeses podem medir forças e decidir quem é o poder dominante na ligação Tasman, o mar ou corredor marítimo que une estes dois países, e tudo será decidido numa série a três jogos da Bledisloe Cup. O ano passado contámos a história desta taça ancestral que tem sido largamente levantada pelos All Blacks para a ira dos adeptos dos Wallabies, com estes sempre a suspirar por um volte-face, que teima a não chegar, apesar de terem conquistado uma ou outra vitória nos últimos 10 anos. No registo histórico, os neozelandeses ganharam por 22 ocasiões, enquanto os australianos só foram capazes de derrubar o seu arquirrival em 5 de um total de 30 jogos entre 2011 e 2021.

Contudo, parecendo que a Nova Zelândia vai novamente derrotar “facilmente” a Austrália, há algumas notas a tirar e analisar, seja pelos reforços de última hora convocados por Dave Rennie (o “mago” Quade Cooper está de regresso), pela instabilidade emocional dentro do grupo dos All Blacks ou porque há ainda divergências em relação ao melhor XV em qualquer uma destas superforças do rugby mundial. Vamos ver o que ambas oferecem, quais são as expectativas, os principais nomes e algumas novidades…

 

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ALL BLACKS: ENTRE A INOVAÇÃO, O CLASSICISMO E A POSTURA (ERRADA) DE FOSTER

Ian Foster é um homem que corre contra o tempo, e isto se explica pela falta de confiança que alguns jogadores têm no seleccionador, para além do facto de existir um movimento a pedir a sua substituição em prol da entrada/ascensão de Scott Robertson ao cargo técnico mais alto da Nova Zelândia. Foster, que assumiu o lugar deixado por Steve Hansen após o Mundial 2019, não foi capaz de impressionar os adeptos em 2020, consentindo uma derrota humilhante frente à Argentina, sobrevivendo a um Tri Nations pouco entusiasmante, carregado de erros de processamento de jogo (apoio lento e inexistente por vezes, fisicalidade pouco dotada de inteligência e fases-estáticas que iam da excelência ao medianismo) e pouca “agressão” física no querer tomar as rédeas dos encontros.

Ian Foster protagonizou um arranque pouco saudável, se quisermos assim chamar, gerando uma onda de críticas e dúvidas em relação à sua competência e capacidade para guiar este “ferrari” negro que tem os faróis apontados ao próximo Mundial, sem ter o motor equilibrado e capacitado para dominar ou procurar soluções nos jogos mais difíceis. Em 2020, a selecção sénior neozelandesa somou 3 vitórias, 1 empate e 2 derrotas, o que confere uma pressão preocupante para o futuro da equipa técnica dos campeões do Mundo em 1987, 2011 e 2015.

Que problemas existem dentro da máquina dos All Blacks? Principalmente três, com dois a merecer o primeiro lugar deste pódio. São eles: apoio concedido lento e pouco comprometido ao portador de bola; capacidade de resposta e adaptação frágil em momentos que o adversário responde bem aos primeiros 10 minutos; indefinição do trabalho da 3ª linha e centros cria caos na organização, que contra adversários mais compactos revela debilidades. Comecemos pela primeira, que é a mais grave e rápida de explicar.

Os All Blacks dominaram os últimos 20 anos (sim, com só dois mundiais conquistados, mas eram a selecção com maior percentagem de vitórias à escala global) muito pela aptidão ofensiva de criar espaços onde não existiam, de terem sempre um apoio multifacetado ao portador da bola, com diversas opções para desferirem golpes no bloco contrário, apresentando uma velocidade de jogo complicada de parar, com este elemento a ter sido decisivo para as conquistas no Campeonato do Mundo de 2011 e 2015.

Fast forward para 2020, e com Foster, os All Blacks parecem não conseguir acompanhar a sua própria velocidade de jogo, revelando uma limpeza de ruck deficitária ou um apoio ao ataque de ténue confiança, cedendo demasiadas penalidades no chão. Frente à Argentina – no 1º jogo frente aos Pumas em 2020-, vimos em prática o segundo problema, a debilidade mental quando o bloco contrário apresenta algum tipo de fisicalidade de maior proporção, levando aos neozelandeses a duvidar das suas próprias capacidades, cometerem erros estratégicos e a sucumbirem ao que o adversário quer. Estes dois parâmetros têm sido claros problemas no sucesso dos All Blacks em garantirem domínio do jogo, que vai para lá da posse de bola ou território, limitando o potencial técnico e individual, que leva a uma quebra clara do colectivo, sendo estes os principais desafios para 2021.

MO’UNGA OU BARRETT?

É, sem dúvida alguma, a grande discussão dentro do elenco e que se vai prolongar até ao Mundial de Rugby em 2023… quem tem de vestir a camisola nº10? A palavra merecer poderia ser melhor colocada, já que Richie Mo’unga pelas duas últimas épocas entraria fácil na camisola, seja pelo número de campeonatos conquistados nos Crusaders ou pela sua influência em como a equipa de Scott Robertson se mexe dentro de campo, oferecendo um poder de transmissão de bola de grande qualidade e de aproveitamento categórico dos espaços, mais o jogo ao pé refinado e uma boa cobertura defensiva. Porém, em 20 aparições pelos All Blacks, Richie Mo’unga só esteve excelente em duas como titular (ambas contra a Austrália), desaparecendo na maioria dos outros encontros, algo que criou problemas sérios quando a equipa mais precisava do seu abertura.

Por outro lado, Beauden Barrett tem atravessado uma fase intermitente em termos exibicionais, muito por força de terem tentado encaixá-lo no papel de defesa, que desempenha bem mas sem poder galvanizar a equipa e a si próprio como quando jogava na posição de first receiver, para além de ter ingressado na Top League durante a última época, sem esquecer a mudança atribulada nos Blues. Ambos são mágicos, Beauden Barrett mexe melhor com a equipa nos momentos atribulados, isto desde que a equipa técnica confie em si a 100% (algo que Ian Foster parece não ser capaz de o fazer), e Richie Mo’unga é um 10 mais completo ou estável no processo de overlap e de fornecer jogo, apesar de ser “engolido” com relativa facilidade quando defronta defesas implacáveis no canal 1 e 2.

A Bledisloe e o The Rugby Championship 2021 vão ter um papel importante no decidir quem leva a frente na luta pela camisola 10, sem estar dotada de um carácter decisivo nos termos de quem vai mandar na equipa no Mundial 2023.

OS MAUS EXEMPLOS HUMANOS PODEM CRIAR PROBLEMAS?

Shannon Frizell deu-se como culpado num caso de violência e abuso físico, depois de ter sido levado a tribunal devido a uma agressão física (e não só) cometida durante uma saída em Otago, tendo os All Blacks suspendido o atleta por… 2 jogos. Este pequeno castigo criou um debate interno complicado e que reflecte uma luz negativa em relação a como Ian Foster e a comissão técnica da selecção neozelandesa dá espaço a jogadores com falhas graves de carácter. Os All Blacks, e tudo o que circunda esta selecção, vivem de acordo com um mantra “Better People Make Better All Blacks” (Melhores pessoas fazem melhores All Blacks) e é na sequência desta ideia que se tem impedido alguns jogadores em chegarem ao maior palco de todos ou de os retirar de lá, como foi o caso de Julian Savea, que quando começou a não render o pretendido foi atacado com total veemência por parte de Ian Foster, na altura adjunto de Steve Hansen, e acabou “reformado” como internacional neozelandês.

Porém, chegou a altura de Sevu Reeece, Richie Mo’unga, George Bridge e, agora, Shannon Frizell ascenderem aos All Blacks ou por lá ficarem, e a a comissão de selectors e disciplinar dos All Blacks não só não decidiu disciplinar de uma forma inteligível e que realmente fizesse diferença aos olhos do público, como não quis/quer reflectir em relação a este problema e procurar soluções de melhorar a imagem destes jogadores ou de realmente os querer reabilitar aos olhos do público, mantendo-os dentro das opções comos e nada tivesse se passado.

Até que ponto isto poderá dividir o público neozelandês e o mundial? Só o tempo o dirá.

WALLABIES: A CASA DAS MÁQUINAS INSTÁVEL E O DESEQUILIBRIO OFENSIVO

Dave Rennie bem se pode queixar deste Verão de 2021, pois perdeu os seus titulares na posição de formação e abertura, Nic White e James O’Connor, com esta situação a forçar a criação de um novo duo no par de médios, tendo testado algumas possibilidades no trio de test matches frente à França em Junho passado. Todavia, o problema dos Wallabies não é só no ter um combo 9-10 de confiança e estável, pois outra das grandes preocupações, senão a principal, é o de edificar um bloco de avançados dotados de qualidades como “agressividade” bem medida, compromisso constante na disputa das fases-estáticas, presença no apoio ao ataque e de eficácia na abordagem ao breakdown, sem cometer penalidades pelo caminho.

Ou seja, o seleccionador da Austrália tem que começar a fazer avanços sérios no formatar da equipa, quando faltam dois anos para o Campeonato do Mundo, e o primeiro passo passa por definir os 16 avançados que vão lutar pela titularidade, preparando-os para tentar não viver de um jogo em contra-ataque, mas para tentar responder com pujança e dinamismo os seus rivais do Hemisfério Sul. Não precisando de recuar até à época passada, basta ver o que se passou contra os Les Bleus em Junho, num trio de jogos em que os franceses apresentaram uma equipa mesclada por suplentes/reservas/estreias continuando Fabien Galthié a trabalhar no sentido de criar um grupo bem alargado e de excelsa categoria.

Contra a França, a Austrália viu serem expostas, a nu, as suas maiores debilidades/fragilidades, sofrendo consecutivas penalidades no breakdown ou no contacto, sem capacidade para fazer turnovers (Fraser McReight, que nem foi convocado para os Wallabies seria a melhor solução para capturar bolas no chão ou contacto) e inconsistente na tomada de decisões no alinhamento, com isto a oferecer um espetcáculo de imprevisibilidade de resultado até ao fim das series. Demasiados erros, excessivas más leituras do plano de jogo e fracasso em conseguir acalmar a intensidade do encontro quando era necessário.

Por outro lado, Rennie ficou a perceber que possui uma certa quantidade de atletas que vão assumir um peso importante no próximo ciclo: Taniela Tupou, James Slipper, Michael Hooper, Lukhan Salakaia-Loto, Rob Valetini, Harry Wilson, Tate McDermott, Noah Lolesio, Hunter Paisami e Marika Koroibete – este última não deverá contar mais para os Wallabies, a não ser que se abra uma excepção dentro da Giteau Law. As grandes questões vão para a formação do três-de-trás, pois Tom Banks e Tom Wright cismam a cometer os mesmos erros de posicionamento e contra-ataque (Filipo Daugunu está dois níveis acima a nível técnico e físico), no estabelecer de opções para a 1ª linha e de um par de centros rotinado (Paisami e Ikitau, ou deverá Samu Kerevi voltar?).

Entre os erros complexos e as boas dores de cabeça, o staff técnico da Austrália tem um caminho longo a trilhar, que terá de reduzir a fim de se apresentar como candidato no próximo mundial, e tudo começa em 2021.

TATE MCDERMOTT OU JAKE GORDON?

Sem Nic White (lesionado), Jake Gordon e Tate McDermott vão ter que lutar até ao último fôlego pelo lugar de formação, podendo até conquistar a titularidade caso convençam Dave Rennie nesse sentido, sendo que frente à França nenhum realmente despontou ou dominou. Jake Gordon é um 9 mais “clássico”, de pouco risco, centrado em garantir uma circulação da oval correcta e fluída, de processos estáveis e claros, onde o jogo ao pé fazer a diferença seja pelo box kick ou por ele próprio tentar jogar em profundidade; Tate McDermott é um 9 que anima o jogo, gosta de imprimir velocidade e assumir o risco de ele próprio movimentar a equipa, com a cabeça voltada para aproveitar aberturas juntas ao ruck, sem deixar de apresentar um pontapé calibrado, sendo que não é uma arma de eleição do seu reportório técnico.

Por isso, Gordon garante uma noção de jogo estável e compacta, enquanto McDermott tem o poder de acelerar, dar cor a uma equipa monótona e com predileção em ser ele uma das figuras centrais dentro de campo. Depende agora muito de como Dave Rennie quer atacar os All Blacks, mas a primeira preocupação do líder do staff técnico dos Wallabies não é como os formações podem pôr a equipa a jogar, e sim como podem capacitá-la melhor na defesa, reacção ao pós-perda/cedência de bola e de manter uma comunicação defensiva activa e coesa.

A SAÍDA DE KOROIBETE PODERÁ SER UM CATALISADOR NEGATIVO?

Marika Koroibete, um dos melhores internacionais pela Austrália nos últimos 4 anos, vai abandonar o Super Rugby AU/Tasman já a partir da próxima época (emigra para o Japão em Dezembro) e, deste modo, os Wallabies ficam órfãos não só de um ponta rápido, explosivo e tremendamente complicado de parar, como de um autêntico comandante no três-de-trás que pode impulsionar os seus colegas e equipa a qualquer momento, o que torna toda a missão de o substituir mais complicada.

É uma preocupação de Dave Rennie para a próxima época, não há dúvidas disso, pois deverá ser difícil encontrar alguém consiga apresentar um nível exibicional das mesmas proporções, que, no entanto, pode ser uma oportunidade para construir um três-de-trás diferente e que crie um efeito surpresa nos adversários. As possíveis combinações de maior interesse são: Filipo Daugunu-Tom Banks-Andrew Kellaway (velocidade e destreza, jogo ao pé e capricho tático, agilidade, explosão e pontapé profundo); Tom Wright-Tom Banks-Suliasi Vunivalu (dinamismo e agilidade, jogo ao pé e capricho táctico, velocidade, manobrabilidade e poder físico).

Dave Rennie tem agora que decidir por onde passa o futuro, e esta Bledisloe Cup pode ser o ponto de partida para montar algo novo no três-de-trás, pelo menos anos até que haja notícias em relação a possíveis alterações na Giteau Law.