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ARTIGO OPINATIVOA Confederação Brasileira de Rugby lançou seu novo sistema de competições, que entrará em vigor em 2023, contemplando pela primeira vez todas as categorias: adulto masculino (XV e sevens), adulto feminino (XV e sevens), juvenil masculino (XV e sevens) e juvenil feminino (XV e sevens). Mais importante que isso é o fato das competições terem sido desenhadas com uma proposta de desenvolvimento por trás. Todas têm uma razão de existirem e isso é realmente importante.

Vamos a alguns pontos relevantes?

Se você não leu como será o sistema de competições no outro artigo, ficará difícil entender esta análise, já alerto.

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Campeonatos Nacionais e Estaduais sendo de fato complementares

É essencial para o futuro do rugby masculino no nível amador ter um calendário que intercale os jogos dos campeonatos nacionais e estaduais. Um dos maiores problemas existentes no rugby brasileiro era o descompasso entre campeonatos estaduais e nacionais. Alguns clubes tinham semestres muito desiguais, pois jogavam o estadual inteiro em parte do ano e depois não tinham mais nenhum torneio capaz de gerar engajamento no restante do ano.

O novo sistema intercalará os campeonatos estaduais e nacionais. Agora, um clube que não dispute campeonatos nacionais passará a ter um calendário consistente de março a outubro no rugby XV. O benefício disso já pode ser visto já em São Paulo, onde as Séries B e C (disputadas de março e outubro) sempre tiveram um número reduzido de clubes morrendo. Obviamente, há clubes em São Paulo que jogavam o estadual e ainda assim morreram nos últimos anos – e cada um tem seus motivos. Mas há uma consistência notável no número de participantes dos campeonatos paulistas e parte do motivo é um calendário mais espaçado de jogos nas divisões inferiores.

Já para os clubes que disputam os campeonatos nacionais, o novo modelo permitirá uma melhor gestão dos elencos, pois os treinadores poderão identificar melhor quando será melhor descansar cada jogador e quando será melhor dar oportunidade a atletas menos experientes. É verdade que teremos muitos jogos decidivos no mês final, mas ainda assim, justamente porque mais atletas puderam ser usados ao longo do ano, o resultado será também mais opções para cada time nas finais. O trabalho passará a ser realmente de longo prazo: 7 meses de amadurecimento de um elenco e de uma proposta de trabalho para ter como desfecho um mês de finais intenso. Melhor do que quebrar o trabalho em dois. É preciso pensar nos frutos disso a longo prazo.

Outro ponto crucial é que para se jogar qualquer campeonato nacional, de XV ou sevens, a participação no estadual será obrigatória. Um clube não pode seguir achando normal crescer sozinho em seu estado. Não é sustentável.

 

A regionalização é essencial

Novamente, o rugby brasileiro não pode – nem deve – fugir da discussão da regionalização. No esporte amador, o desenvolvimento só é alcançado se os recursos são otimizados. No caso das distâncias, quanto menos viagens custosas, melhor. Viagens são boas para a construções do grupo, mas não podem colocar em risco a existência do próprio clube. Para se evoluir no rugby é preciso jogar muito. Ter muitos jogos só é sustentável se as viagens não forem um problema. O sacrifício tem que estar no campo, não no deslocamento. Por isso, a única saída sustentável para o rugby amador é a regionalização.

O novo calendário teve a regionalização como norte, aplicando diferentes soluções para o rugby masculino e o feminino. Daqui em diante, todo mundo tem que entender isso: rugby amador só é sustentável se a maior parte do calendário é de jogos próximos do seu clube. Viagens longas vão ocorrer em vários momentos, sim, mas o calendário não pode depender delas.

Por isso mesmo, o engajamento dos clubes com suas federações estaduais nunca foi tão importante. Só há um futuro para o rugby brasileiro se houver federações estaduais fortes, consolidadas, capazes de apresentarem competições e ações de desenvolvimento que atendam às necessidades de seus clubes. Se seu clube está distante da federação estadual, já passou da hora de mudar isso. E se você tem altas expectativas com relação às federação, também está na hora de cair na real. As federações são como clubes: são feitas por pessoas voluntárias. Federações representam clubes. Nem sempre você vai concordar com quem te representa – é assim que funciona a democracia. Para melhorar a realidade só há uma solução: engajar-se.

 

Rugby mais brasileiro

O ponto mais celebrado do novo calendário é a criação da Copa do Brasil, que finalmente oferecerá a Norte, Centro-Oeste e Nordeste a chance de seus clubes jogarem campeonatos nacionais de rugby XV. A Copa do Brasil terá suas viagens (a partir das quartas de final) pagas pela CBRu e a adição da Copa dos Campeões a tornará ainda mais importante. A Copa dos Campeões irá opor o campeão do Super 12 e o campeão da Copa do Brasil, oferecendo a times de todas as regiões do país a chance de serem campeões nacionais.

Não faz (e nunca fez) sentido um clube do Norte, Centro-Oeste e Nordeste disputar o Super 12 com todos os seus jogos sendo contra clubes do Sul e Sudeste. Não é sustentável e é um dinheiro mal gasto. A participação de clubes dessas regiões no Super 12 depende da criação de conferências nessas regiões, com os duelos contra sulinos e sudestinos ocorrendo apenas no mata-mata final. Para que isso seja possível um dia, é necessário desenvolver (reconstruir) as competições de rugby XV dessas regiões e é para isso que nos próximos anos servirá a Copa do Brasil. Um passo de cada vez.

Por sua vez, no sevens feminino, o novo sistema do Brasil Sevens também permitirá um planejamento mais racional para clubes de Norte, Nordeste e Centro-Oeste, com a sequência de Torneio Qualificatório e Brasil Sevens oferecendo a um clube dessas regiões a chance de promoção à 1ª divisão do Super Sevens (que tem as viagens pagas pela CBRu) sem precisar passar por um circuito de 2ª divisão todo no Sul e Sudeste, que demandaria viagens insustentáveis.

Por outro lado, o novo sistema do Super Sevens segue dando a oportunidade para os clubes que quiserem também disputarem a 2ª divisão – o que acabará por lhes garantir duas chances de promoção à elite nacional (a primeira chance via 2ª divisão e, em caso de insucesso,a segunda chance via Brasil Sevens).

Por fim, o sevens masculino ainda segue sendo um problema de difícil solução, mas que ganhou uma evolução. Novamente, os estaduais serão o caminho até o Brasil Sevens e será essencial, portanto, a reestruturação deles. O sevens masculino é modalidade olímpica e precisa ser reestruturado, pois viveu nos últimos anos a quase irrelevância. O calendário destinando dois meses no mínimo ao sevens masculino é o começo dessa reconstrução.

 

O nível das seleções regionais é parte essencial do sistema

O outro ponto alto do novo sistema de competição é algo que por tanto tempo foi incansavelmente defendido por mim no Portal do Rugby: a criação do nível das seleções regionais. No rugby amador, em países de grandes dimensões geográficas, selecionados regionais são ferramentas essenciais de desenvolvimento. Um atleta sem ambições maiores no rugby pode se satisfazer com a rotina dos clubes. Mas um atleta que quer chegar longe no esporte precisa de competições desenhadas para atenderem às suas ambições. É aí que entram os selecionados regionais.

A criação de um Campeonato Brasileiro de Seleções para o rugby XV adulto masculino garante que haja um nível de transição do clube amador até o rugby profissional dos Cobras. O atleta que quer ser visto pelo alto rendimento da CBRu terá esse espaço para se destacar. O ideal é um dia termos 27 seleções, lógico, mas isso levará muito tempo para se tornar realista. Era preciso começar de algum lugar e as 3 seleções propostas – Sul, São Paulo e Resto do Brasil – cumprirão o papel de pilotos dessa nova competição para agora. A presença dos Cobras M20 na competição ainda complementará o sistema e oferecerá mais jogos à seleção juvenil – que precisa muito disso.

Já nas demais categorias, isto é, juvenil masculino, juvenil feminino e adulto feminino de rugby XV serão 9 selecionados regionais – algo ainda melhor. Não apenas mais atletas estarão envolvidos e envolvidas nas seleções, como também para a maioria deles e as seleções são hoje a única oportunidade de desenvolvimento. Aqui, as seleções regionais cumprirão o papel de desenvolver categorias que hoje não podem depender apenas dos clubes. No caso do rugby juvenil, ainda há um longo caminho para a maioria dos clubes percorrer, ao passo que o rugby XV feminino ainda está em sua fase embrionária. Para ambos, o caminho certo é sim os selecionados, que ajudarão também a difundir conhecimento, pois os participantes levarão bagagem para os clubes.

 

Efeitos imediatos? Não, só colheremos os frutos a longo prazo

A pandemia causou estragos no rugby brasileiro e os clubes passarão por um 2022 tortuoso. Atletas foram perdidos, categorias de base interrompidas, patrocinadores e parcerias perdidas. O estrago terá repercussões de longo prazo e não podemos esperar que o rugby brasileiro alcance um auge técnico já em 2023. Vai levar muito tempo até mesmo para retomarmos o nível de 2019.

E se clubes e atletas passarão a ter um calendário melhor estruturado, o que dizer de treinadores e árbitros? Essa duas áreas demandarão um olhar cada vez maior. Para termos evolução técnica, é preciso evolução constante dos treinadores e educadores. Para termos bons jogos, precisaremos igualmente de bons árbitros. Obviamente, um calendário maior exigirá mais árbitros, o que significará também que nos próximos anos precisaremos de maior engajamento de clubes e da comunidade no incentivo a mais rugbiers ingressarem na arbitragem e, consequentemente, teremos muitos jogos com árbitro menos experientes. Será preciso paciência e compreensão de que árbitros não são diferentes de atletas: todos precisam de tempo para evolução.

Nosso rugby não cresceu da maneira que necessitava ao longo dos últimos anos em todas as áreas e precisaremos trabalhar muito e dar tempo ao tempo. O novo sistema não produzirá resultados de imediato. Não será da noite para o dia que veremos o melhor rugby. Essa perspectiva será essencial em 2023. Os resultados concretos do novo sistema vão precisar de 5 a 10 anos para serem visíveis. É um tanto óbvio, mas muitos não entendem.


Sistema é apenas parte da solução: nunca esqueçamos

O novo sistema começará a tapar algumas lacunas deixadas pelos últimos anos, mas não solucionará sozinho todos os problemas e necessidades do nosso rugby. É crucial termos um sistema competitivo tão abrangente como o proposto para 2023, que de fato cobre a vasta maioria das categorias e oferece caminho a todos os clubes do rugby brasileiro. Trata-se de um sistema aberto a melhorias e capaz de sustentar a expansão do esporte, mas ele não joga nem treina sozinho.

A construção de um rugby brasileiro melhor, do topo à base, evidentemente que passa pela evolução de clubes, federações, dirigentes, treinadores, atletas, árbitros, público, comunicadores. Passa pela constante capacitação de todas as áreas. Passa por todo mundo em nosso rugby, sem qualquer exceção, ter humildade de saber que está aprendendo a cada dia e que poderá estar errado ontem, hoje e amanhã. Ao fim ao cabo, a paixão e a capacidade de aprender com os erros são centrais para avançarmos nosso esporte.

Finalmente, a discussão do futuro do rugby ainda depende do contexto do esporte brasileiro. Nesta semana, como mostra a postagem importante do Fernando Portugal (acima), vimos os atletas olímpicos se manifestarem sobre a necessidade de se entender o esporte como política pública – algo falado à exaustão há décadas e, como sempre, ignorado na discussão política. Se as escolas não têm boas estruturas esportivas e se não valorizam o professor, como avançar com a cultura esportiva? Se a cidade não conta com áreas verdes públicas para a prática esportiva, como desenvolver um esporte tão dependente de campos gramados como é o rugby? Se as universidades públicas têm receitas escassas pra infraestrutura esportiva e pra pesquisa científica, se a Lei de Incentivo ou o “Sistema S” (tão essenciais pro esporte brasileiro) passam por ataques políticos, como avançar? A discussão é longa. Nada simples. E as influências no nosso rugby são sentido. Não adianta fechar os olhos para o fato de que o rugby não é uma bolha isolada do resto do mundo.

 

O papel nocivo do charlatão das redes sociais

Para encerrar, faço questão de relembrar que infelizmente parte do rugby brasileiro começou a regredir na discussão de ideias com a presença do charlatanismo oportunista nas redes sociais. É a nova categoria de “influenciador” digital desqualificado, que tanto contamina a inteligência do rugby com asneiras. Quem quer um rugby melhor, não pode levar a sério certos “personagens”. É muito visível onde mora o oportunismo, a falta de caráter, a toxicidade. Tome cuidado com as redes sociais, porque o chorume não para de escorrer.

1 COMENTÁRIO

  1. Concordo com todos os pontos, espero que CBRU siga forte no plano e o execute apenas fazendo acertos ao longo dos anos. Não podemos mudar a direção a todo momento, continuidade é necessária e benefica. Reforço que melhorias são sempre importantes mas sem mudar tudo. Vale salientar também que os clubes tem de fazer a parte que lhes cabe, desenvolver as bases e o jogo.